Na semana passada o deputado Marcelo Freixo esteve no Flow Podcast, apresentado por Monark e Igor. Em certo ponto da entrevista, o assunto foi a flexibilização das armas de fogo [1]. O deputado é conhecdo, dentre outras razões, por ter um posicionamento contrário à flexibilização. Monark o questionou dizendo que o problema não são as armas em si, mas as intenções das pessoas. Na visão do apresentador, quem quer matar outra pessoa mata até com um automóvel.
Monark: – Por que você confia que eu tenha um carro e não confia que eu tenha uma arma?
Freixo: – Por que o carro foi feito para dirigir.
Monark: – Mas serve para matar.
Freixo: – Você sai com o carro procurando alguém para atropelar?
Monark: – Você sai com a arma procurando alguém para matar?
Freixo: – Sai com a arma para que? Para dirigir?
Não é a primeira vez que comparações desse tipo são usadas nesse contexto. Frequentemente aqueles que pedem maior flexibilização do uso de armas de fogo as comparam com outros utensílios para defender essa posição. Aqui pretendo mostrar de que modo armamentistas lançam mão de uma falácia lógica conhecida como “falsa equivalência” [2]. Chamo de “armamentistas” aqueles que defendem, de modo geral, maior facilidade na compra, venda e aquisição das armas de fogo.
Em janeiro de 2019, tivemos um outro exemplo da falsa equivalência: o ministro da Casa Civil Onix Lorenzoni comparou armas de fogo a liquidificadores. Na perspectiva dele, o risco para uma criança de alguém manter uma arma de fogo em casa equivaleria ao risco de a mesma criança se acidentar com um liquidificador. Segundo o ministro, evitar acidentes é uma questão de “educação” e “orientação”.
“A gente vê criança pequena botar o dedo dentro do liquidificador e ligar o liquidificador e perder o dedinho. Então, nós vamos proibir os liquidificadores? Não.”, disse Lorenzoni [3]
Assim como Monark, o ministro comparou a arma de fogo a um outro utensílio, neste caso, a um eletrodoméstico. Além de falaciosa, a comparação desconsidera alguns dados, como o número de acidentes e de mortes envolvendo armas de fogo e liquidificadores nos Estados Unidos entre 2011 e 2014 [4]. No período, o número anual de mortes somente de crianças por armas de fogo foi de 1.290, enquanto que por conta de acidentes domésticos envolvendo liquidificadores foi de zero!
Monark, Lorenzoni e tantos outros que pedem mais facilidade na circulação de armas ignoram também a posição da maioria dos especialistas em segurança pública no Brasil e a grande maioria dos estudos mundiais que – para usar uma palavra pertinente ao tema – “municiam” com os melhores embasamentos Freixo e os demais que pedem restrições às armas. Esses estudos apontam correlação entre mais armas e mais crimes e mortes [5]
Poderia não ser um carro ou um liquidificador, mas qualquer outra coisa, como um ferro de passar roupa ou cacos de vidro. Essa estratégia retórica pode ser resumida nas seguintes frases: “Armas não matam pessoas. Pessoas matam pessoas”. Frequentemente essas frases são repetidas pelos defensores das armas para ressaltar que quem quer matar vai matar de qualquer jeito, utilizando qualquer coisa. De fato, é possivel matar com um ferro de passar ou um caco de vidro (com liquidificador, creio ser bem mais complicado). Os inúmeros casos de atropelamentos que resultaram em mortes mostram que o carro também pode ser uma arma letal. Sendo assim, essas comparações portanto são pertinentes, fazem sentido, certo?
O conceito de tecnologia
Errado! Primeiro, porque as comparações desconsideram o próprio conceito de tecnologia, que é um produto da ciência e da engenharia que envolve um conjunto de instrumentos, métodos e técnicas que visam a resolução de problemas. Uma aplicação prática do conhecimento científico, nas mais variadas áreas do saber, para resolver coisas específicas .
Como explica o sociólogo Alan Mocellin, a tecnologia envolve um conjunto de práticas visando a execução de um determinado fim. “A tecnologia tem como seu horizonte totalizante o discurso científico, sendo derivação prática desse discurso” (2015, p. 83). Ou seja, ela é a face prática da ciência, quando você pega um conjunto de saberes e aplica para criar coisas ou procedimentos que possibilitem a resolução de algo concreto.
A palavra tecnologia vem do grego “tekhne“, que significa “técnica, arte, ofício”, juntamente com o sufixo “logia“, que significa “estudo” [6]. Quando pensamos em tecnologia, costumamos imaginar coisas “modernosas”, como satélites e computadores, mas as tecnologias são desenvolvidas pelos homens desde tempos primórdios. As tecnologias primitivas ou clássicas, por exemplo, envolvem a descoberta do fogo, a invenção da roda, a escrita, dentre outras.
Nessa perspectiva, dentro do conceito e da filosofia da tecnologia, podemos concluir que a melhor maneira de executar uma tarefa costuma ser, via de regra, usando os objetos projetados especificamente para a tal tarefa. Por exemplo, você pode cortar um queijo com uma faca de pão? Claro que sim. Mas um cortador de queijo corta as fatias com mais precisão e praticidade, porque foi projetado exatamente para isso. Da mesma forma, você até pode beber água em um prato, mas no copo fica muito melhor e mais fácil. O prato serve melhor para coisas sólidas, não líquidas. E você sabe bem disso.
Parece óbvio, correto? Mas quando armamentistas usam da falsa equivalência para comparar armas de fogo a qualquer outra coisa que lhes venha à cabeça, parecem ignorar esse conceito básico. Mas apenas parecem. Eles não ignoram de fato. A falácia da falsa equivalência é apenas (como toda falácia) uma estratégia retórica usada para ludibriar os interlocutores (aquelas pessoas para quem eles falam). E aí vem o nosso segundo ponto: se os defensores das armas realmente acreditassem nas comparações que fazem, não precisariam defender a flexibilização das armas, bastariam usar um ferro de passar, cacos de vidro ou um carro.
Mas eles continuam a defender a flexibilização das armas de fogo, mesmo tendo acesso a coisas e objetos, segundo eles, também letais. Continuam justamente porque sabem que as armas têm vantagem competitiva na finalidade para a qual foram projetadas (alvejar e até matar) quando comparadas a outros artefatos. Só que é justamente essa vantagem competitiva que leva à necessidade de maior regulamentação das armas em relação a tantas outras coisas que você pode comprar com facilidade por ai. O grau de letalidade da arma é o que justifica sua maior regulamentação.
O próprio Monark da exemplo dessa estratégia retórica enganadora e do quanto ele próprio no fundo não acredita nela. Ele diz que quer adquirir uma arma e argumenta que é para a própria proteção. Logo em seguida, compara armas de fogo e automóveis para se contrapor às restrições. Ora, se ele já tem um carro, então não precisa de uma arma. Se não tem, pode comprar um. Como poderia comprar qualquer outra coisa. Não precisaria defender a flexibilização de armas. E assunto encerrado!
Mas isso se ele realmente acreditasse na comparação que faz. Armamentistas não acreditam, de fato, nas comparações absurdas que fazem. Como dissemos, é pura estratégia retórica.
A tecnologia em 2001- Uma odisseia no espaço
Conforme dito, a tecnologia acompanha o homem há muitos anos, e o filme 2001- Uma odisseia no espaço (1968), do diretor Stanley Kubrick, traz boas reflexões sobre o assunto. Esse clássico do cinema nos faz pensar sobre os seus usos desde os primórdios hominídeos até as naves espaciais desenvolvidas por nós, Homo sapiens. Em uma sequência maravilhosa [7] (que provavelmente mesmo aqueles que nunca assistiram ao filme conhecem), vemos um macaco segurando um grande osso. Ele para, pensa, olha para o osso, olha para o chão, bate o osso no chão, bate com o osso em outros pedaços de ossos que estavam espalhados pelo chão e que se quebram com a pancada. O macaco parece ter uma espécie de revelação!
Extasiado, o animal estava naquele momento descobrindo que aquele pedaço grande de osso que em sua mão poderia ser usado para quebrar coisas e também como arma, para ferir e abater outros animais. Era o início do uso da tecnologia, um passo a mais no estágio evolutivo da espécie da qual mais tarde decorreriam os humanos. Vemos na cena o macaco pensando, usando o seu saber – ainda que um saber limtado – testando o osso como ferramenta. Cada pequena pancada era um teste. A verificação por meio de testes seriam uma forma rudmentar de fazer ciência, para finalmente chegar ao domínio de uma nova tecnologia.
E essa nova tecnologia viria a ser usada em maior escala na cena seguinte. Em um conflito entre dois grupos de macacos, aquele cujos membros estavam com ossos nas mãos usando-os como armas levou a melhor.Eles bateram em seus adversários e dominaram o território. A sequência termina com um dos vencedores jogando o osso/arma para o alto, que praticamente se transforma em uma nave espacial. Talvez a elipse mais famosa da história do cinema, simbolizando todo o desenvolvimento tecnológico dos primórdios até o que havia de mais moderno naquela década. A história da humanidade em dois planos.
Da pré-história para os tempos atuais, as diversas tecnologias foram se desenvolvendo, inclusive na área bélica, com armas cada vez mais modernas. Na Idade Média, por exemplo, usava-se arco e flechas, bestas, espadas e catapultas. As pessoas já matavam umas as outras antes das armas de fogo e do desenvolvimento da pólvora, mas elas sempre preferiram aquilo que a tecnologia oferecia de melhor para esta finalidade em suas épocas. Isso é óbvio e faz sentido. O que não faz sentido são as comparações esdrúxulas feitas pelos armamentistas atuais. Sendo assim, o óbvio precisa ser dito, e este texto se presta ao óbvio. As falácias confundem o debate público, e a combinação de falácia lógica e políticas públicas é um perigo!
Nossos precursores Homo habilis receberam esse nome por desenvolverem habilidades no uso e fabrico de utensílios para fins específicos, como a caça e o combate. Tiveram o domínio e o entendimento da tecnologia. Estamos em 2021 e alguns Homo sapiens, quando fazem comparações entre armas e carros, parecem desconsiderar aquilo que os Homo habilis já sabiam há cerca de 1 milhão de anos. Involuímos?
Referências:
MOCELLIM, Alan. Comunicação e Reencantamento: retórica ou possibilidade?. Esferas, v. 6, p. 79-87, 2015
[1] Cortes do Flow – Debate sobre a diferença entre posse e porte de armas:
https://www.youtube.com/watch?v=DqyvScF9hK0
[2] Falsa equivalência:
http://gestaouniversitaria.com.br/artigos/falsa-equivalencia
[3] Arma em casa é risco para criança tanto quanto liquidificador, compara Onyx https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/15/arma-em-casa-e-risco-para-crianca-tanto-quanto-liquidificador-compara-onyx.ghtml
[4] Comparações de acidentes e mortes por armas de fogo e com liquidificadores:
https://edition.cnn.com/2017/06/19/health/child-gun-violence-study/index.html
[5] Armas, crime, morte: o peso da evidência:
[6] Significado de tecnologia
https://www.significados.com.br/tecnologia-2/
[7] O pensamento e a descoberta da ferramenta “2001: Uma Odisseia no Espaço”: