O Festival Internacional de Cinema de Locarno, lotado na Suíça, tem como principal característica uma seleção cuidadosa de filmes que exploram narrativas poéticas e/ou experimentais. Apesar de seu viés noticiosamente alternativo, é de onde provêm alguns dos mais valiosos xodós críticos nas listas de final de ano. O prêmio principal é o Leopardo de Ouro, e consagra os filmes que melhor exploram a lógica autoral, com vistas “a abarcar os novos territórios da arte cinemática, aderindo aos fluxos estéticos contemporâneos”. Eis mais ou menos o que lemos na própria descrição do evento…
Por causa da pandemia do CoronaVírus, não houve edição presencial em 2020, de modo que uma safra de premiados em edições anteriores foi disponibilizada virtualmente – em parceria com a plataforma de ‘streaming’ Mubi –, além de algumas produções do Sudeste Asiático e os lançamentos da seção Pardi di Domani, dedicada aos curtas e médias-metragens.
Em 2021, o festival retorna às atividades físicas: entre os dias 04 e 14 de agosto, mais de duzentos filmes serão exibidos. “Somente uma coisa está faltando: tu”, diz a publicidade. E a incitação procede: ainda que muitos dos realizadores sejam estreantes, chamam a atenção pela acurácia estilística de seus trabalhos, de modo que a adesão intuitiva ajuda bastante o espectador no momento de escolher os filmes que deseja ver…
Na referida seção Pardi di Domani de 2021, excelentes expectativas estão sendo direcionadas ao média-metragem brasileiro “A Máquina Infernal”, dirigido por Francis Vogner dos Reis, curador da importante Mostra de Cinema de Tiradentes. Sua abordagem sobre “o apocalipse da classe trabalhadora” soa assaz promissora, sendo que este realizador já é deveras elogiado enquanto roteirista. No desespero político atualmente enfrentado por seus compatriotas, o filme demonstra-se emergencial: desde já, um dos mais aguardados do ano!
Dentre os filmes apresentados na Competição Internacional de Longas-metragens, os novos trabalhos de diretores renomados serão trazidos à tona, e alguns deles deixam os cinéfilos em polvorosa, como: “After Blue (Paradis Sale)”, mais um exercício barroco e hiper-sexualizado de Bertrand Mandico; o drama antibelicista “Zeros and Ones”, de Abel Ferrara; e “Nerema”, recente petardo do sérvio Srdjan Dragojevic, sobre estórias envolvendo religião, entre elas a aparição de uma auréola sobre a cabeça de um estouvado ateu. Levando-se em consideração os apanágios do Festival, as propostas artísticas revelam-se sobremaneira inventivas e promissoras: que venham os filmes!
Para quem não pode viajar para a Suíça – ou não se sente preparado para voltar às salas de cinema –, o sítio eletrônico do Festival disponibilizou amostras dos cardápios de duas seções, para acesso virtual: uma delas, é o catálogo de Cineasti del Presente, que “oferece uma seleção de primeiros ou segundos filmes, em estréias mundiais, dirigidos por talentos globais emergentes”. Na plataforma digital do evento, dez títulos podem ser acessados, por 24 horas, após as suas sessões presenciais. Alguns dos que despertam afã: “L’Eté l’Eternité”, da francesa Emilie Aussel; “Public Toilet Africa”, do ganês Kofi Ofosu-Yeboah; “Mostro”, do mexicano José Pablo Escamilla; “Il Legionario”, do belarusso radicado na Itália Hleb Papou; e “Actual People”, da estadunidense Kit Zauhar. Isso para ficar em apenas alguns!
Dentre os onze curtas-metragens asiáticos que ficaram disponíveis para audiência internacional na seção Open Doors, alguns destacam-se pela qualidade exuberante. O melhor deles é o vietnamita “Live in Cloud-Cuckoo Land” (2020, de Minh Thy Pham Hoang & Nghia Vu Minh), que estreou no Festival de Cinema de Veneza do ano anterior e concede uma homenagem muito particular ao universo kafkaniano, através dos anseios românticos de um cantor de karaokê que apaixona-se por uma vendedora de loja, até transformar-se num cavalo, numa cidade em perene convulsão tecnológica. Surrealismo urbano com acentuado teor político!
Outra grata surpresa é o curta-metragem indonésio “Dear to Me” (2021, de Monica Vanesa Tedja), sobre um rapaz em férias numa praia paradisíaca que passa a sonhar com o grande amor de sua vida, mas é hostilizado por sua família convertida ao cristianismo, em razão de suas tendências homossexuais. O contraponto entre o idílio romântico e a denúncia ideológica é primoroso.
Dois documentários com diferentes propostas se sobressaem: o filipino “Next Picture” (2020, de Cris Bringas), sobre os diálogos pornográficos, trocados via WhatsApp, entre os ex-freqüentadores de cinemas hoje esvaziados; e o cambojano “Side by Side” (2021, de Polen Ly), que revive as memórias de pessoas obrigadas a casarem-se contra a vontade, durante o apogeu do Khmer Vermelho.
Uma proposta digna de atenção está no curta-metragem tailandês “Reincarnated Life” (2019, de Jakkrapan Sriwichai), que, a partir de uma tela dividida, apresenta-nos aos dilemas de “dois homens misteriosos que costumavam viver ‘normalmente’ num mundo em que os humanos eram imortais”, até que deparam-se com um cadáver e passam a lidar com manifestações de súbita violência. A fotografia e o desenho de som são impressionantes, como também constatamos no curta-metragem mongol “Mountain Cat” (2020, de Lkhagvadulam Purev-Ochir), sobre uma garota doente que, ao ser levada por sua mãe para ser tratada por um xamã local, questiona o possível charlatanismo dos continuadores juvenis dos costumes ancestrais de seu povo.
Como se pode perceber nas sinopses extraídas do próprio catálogo do Festival, os embates entre tradição e contemporaneidade são recorrentes, confirmando a perícia da safra locarniana em relação às tendências cinéfilas que valorizam o culto estético. O que ocorre ao longo destas exibições merece ser divulgado. Não é casual que, por mais assimilado pelas franquias do Capitalismo que seja, o Cinema permanece merecedor da alcunha longeva de Sétima Arte!
Wesley Pereira de Castro.