Apesar de não ser feriado em todas as cidades brasileiras, 20 de novembro é reconhecido como o dia da Consciência Negra. Entretanto, ainda há quem negue, por razões oportunistas e/ou de mau caratismo, que existe racismo no Brasil. E muitos sequer sabem o que esta data representa…
No dia 20 de novembro de 1695, morreu o líder quilombola Zumbi dos Palmares [1655-1695], após uma longa perseguição e uma traição. Ele ajudou a salvar vários escravos que fugiam dos engenhos de cana-de-açúcar no nordeste brasileiro. E, para além de inúmeras controvérsias e polêmicas que cercam a sua vida pessoal, são imponentes as homenagens realizadas em seu nome, visto que ele é um baluarte exordial de resistência da raça negra no país.
A data passou a ser cogitada como feriado após ser amplamente comemorada nos calendários escolares e, a partir de 2011, foi registrada legislativamente. É muito recente, portanto, e ainda atravessada por injustiças e insatisfações. Tanto que, no dia 19 de novembro de 2020, um dia antes da celebração em pauta, um homem negro foi brutalmente assassinado por seguranças de uma rede de supermercados em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. O fato foi tão aviltante que desencadeou uma onda de protestos em várias cidades. Como o presidente do país reagiu a esta situação? Declarando que enxerga todos os cidadãos brasileiros “com as mesmas cores: verde e amarelo”!
Além de reverberar a sua perfídia habitual, a nojosidade deste pronunciamento deixa evidente a intenção do presidente Jair Bolsonaro em mais uma vez, encobrir situações abjetas sob investigação, como os ganhos ilícitos de seus parentes e a crise energética no Estado do Amapá, que ficou mais de uma semana sem energia elétrica. Ao insinuar que o racismo não é percebido, o (des)governante defende a continuidade de uma miscigenação negada chistosamente nas frases preconceituosas de sua campanha eleitoral. Uma situação triste e revoltante para os brasileiros.
Piorando ainda mais este desamparo, novas denúncias de agressões institucionais contra negros foram noticiadas durante e após uma data que deveria ser de exortação. Mais que existente no Brasil, o racismo é danoso, letal, destrutivo e vergonhoso. À guisa de ínfimo consolo, a sanha mercantilizadora (vulgo neoliberalismo) vem convertendo em interesse vendável as pautas identitárias, de modo que campanhas antirracistas promovem a divulgação massiva de algumas marcas em detrimento de outras, tal como também ocorre em relação à condenação da homofobia. Está longe de ser uma adesão ideal, mas é uma abertura oblíqua para a igualdade pretendida de oportunidades, nesse caso, a partir das projeções de consumo.
No cinema hollywoodiano, a superprodução “Pantera Negra” (2018, de Ryan Coogler) foi bastante celebrada por promover a protagonização de um negro como super-herói, o que engendrou reações positivas por parte do público e da crítica especializada. Foi uma estratégia de representatividade racial que deu muito certo, inclusive em termos financeiros. No Brasil, Maju Coutinho é também um símbolo afirmativo de gradual modificação de um panorama midiático racista, ao apresentar pioneiramente um telejornal, o que ainda é raro para jornalistas negros na TV brasileira. Em termos assaz insatisfatórios, está ocorrendo uma possível ampliação de mercado…
É neste sentido que atrevemo-nos a recomendar o filme infantil “Uma Invenção de Natal” (2020, de David E. Talbert), disponibilizado via Netflix no dia 13 de novembro de 2020. Trata-se de uma típica estória natalina, quase clicherosa em suas boas intenções familiares. Mas possui um diferencial digno de nota: o elenco é quase integralmente negro, sem que haja a necessidade interna de chamar a atenção para este aspecto. Os conflitos que os personagens enfrentam possuem um tipo genérico de autoafirmação. Na trama, uma garotinha que tem uma aptidão natural para a percepção da magia ouve de sua avó uma narrativa fascinante, sobre um fabricante de brinquedos que, de repente, perdeu a sua capacidade de inventar.
Inicialmente interpretado por Justin Cornwell, o protagonista Jeronicus Jangle é famoso em sua cidade pela perícia que demonstra na criação de geringonças mecânicas, que movem-se como se estivessem vivas. Apaixonadíssimo por sua esposa e por sua filha, ele possui também um aprendiz, que esforça-se para assimilar os segredos profissionais de seu patrão. Quando Jeronicus dá vida ao caprichoso brinquedo Don Juan Diego (dublado pelo cantor Ricky Martin), um vaidoso toureiro que recusa-se a ser multiplicado industrialmente, este aprendiz rouba o livro de ideias de seu chefe e erige uma empresa concorrente. Alegando apenas “ter pego emprestado para nunca mais devolver” o arsenal técnico de seu mentor, Gustafson (interpretado na juventude por Miles Barrow e, mais velho, por Keegan-Michael Key) provoca a ruína de Jeronicus, que desiste de ser inventor e abre uma depauperada loja de penhores…
Vivificado na velhice por Forest Whitaker, Jeronicus Jangle desiste de suas ambições e perde o contato emocional com a filha, depois do falecimento de sua esposa. Mas a chegada de sua neta Journey (Madalen Mills), numa visita para o Natal, permitir-lhe-á uma nova chance de acreditar e de reerguer-se como profissional e como pessoa. Como se vê nesta sinopse, não há nada que associe os personagens ou as situações a um elenco predominantemente negro, o que configura um mérito produtivo. Afinal, atores negros podem e devem interpretar todos e quaisquer papéis. Muito bem, aliás, conforme é demonstrado neste simpático filme.
Não obstante o enredo senso-comunal, as caricaturas vilanazes e a direção desengonçada, “Uma Invenção de Natal” possui números musicais graciosos – compostos, entre outros artistas, pelo premiado John Legend – e permite que as platéias infantis negras possam identificar-se naturalmente com os personagens, sem que a cor de sua pele surja como diferencial. Custava desejar que isso acontecesse mais vezes no circuito comercial? Esta percepção é mais que suficiente para atestar que, sim, infelizmente, o racismo persiste em nossas sociedades atuais… E, enquanto contrapartida, é cada vez mais intenso o grito de resistência e valorização: vidas negras importam – e muito!
Wesley Pereira de Castro.