Na temporada de premiações hollywoodianas do ano 2021, um sumo favorito estabeleceu-se como Melhor Ator Coadjuvante: além de ter recebido o Globo de Ouro e o Critics’ Choice Award nesta categoria, era dada como certa não apenas a sua indicação, mas também a sua consagração no Oscar. Ocorre que, na verdade, ele interpreta o personagem central de “Judas e o Messias Negro” (2021, de Shaka King), sendo estranho que ele não esteja nomeado na categoria principal…
Como quem determina as indicações são os produtores, não é a primeira vez que isso ocorre: há diversos precedentes neste certame, em que a redistribuição de papéis assegurou a consagração de atores que, noutra conjuntura, talvez não tivessem tantas chances, visto que a cerimônia do Oscar é regida por fortes esquemas propagandísticos. Entretanto, quando as indicações foram anunciadas, em 15 de fevereiro de 2021, algo ainda mais inusitado aconteceu: o outro ator principal do filme, Lakeith Stanfield, também foi indicado como Melhor Ator Coadjuvante. Ou seja, ambos os protagonistas foram nomeados numa categoria secundária. Será que isso não evidencia algo que extrapola as regras da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas?
Não são poucas as denúncias de racismo associadas a esta premiação, que, no ano em pauta, tornam explícita uma questão sobremaneira problemática: confirmando que o personagem interpretado por Daniel Kaluuya era previdente acerca daquilo que protestava – e que causou o seu assassinato – é como se os negros ainda hoje fossem condenados a serem coadjuvantes no reconhecimento de suas próprias vidas, de modo que, mesmo quando são laureados por isso, tal feito dá-se de maneira enviesada. Diz Fred Hampton (1948-1969), numa cena inicial do filme em pauta: “sempre que uma reforma é anunciada pelos brancos, a intenção é tornar os escravos melhores [e, por extensão, mais obedientes]”…
A biografia do líder dos Panteras Negras no Estado de Illinois é contada numa narrativa que mescla o gênero policial com os rompantes de drama familiar. O protagonista é personificado com uma intensidade mui aplaudível, de maneira que todo e qualquer prêmio que Daniel Kaluuya receber por este papel é deveras merecido. Mas a contrapartida actancial de Lakeith Stanfield é ainda mais drástica: afinal, ele interpreta alguém que está interpretando um papel, de modo que o agente do FBI Roy Mitchell (Jesse Plemons) chega a comentar, após observar o seu comportamento gregário: “tua interpretação merece um Oscar”. É uma observação metalinguística duplamente acertada!
Sintetizado de maneira precisa em seu título, o dilema dos personagens de “Judas e o Messias Negro” encontra-se primordialmente nas ações do informante William O’Neal [1949-1990], ex-ladrão de carros que, ao ser preso fingindo ser um agente federal, é chantageado para infiltrar-se entre os Panteras Negras e contribuir para a sabotagem das implementações revolucionárias do grupo. Diferentemente do que se temia, Fred Hampton e seus companheiros estavam longe de serem terroristas, não obstante utilizarem-se da exortação defensiva da violência contra os “porcos” [gíria que designava os policiais brancos]: o interesse primordial era construir centros de organização coletiva que proporcionassem alimentação, moradia e educação para os habitantes menos favorecidos de sua vizinhança. Dotado de um carisma surpreendente e de uma crença inabalável nas transformações advindas do reconhecimento das próprias contradições sociais, Fred conseguia convencer pessoas relacionadas aos mais diferentes segmentos a participarem de seus intuitos, unificando negros, porto-riquenhos, migrantes interioranos e até mesmo os traficantes locais.
Para os membros do FBI [Federal Bureau of Investigation], entretanto, o grande temor era que Fred Hampton fosse convertido na figura de um “messias negro”, recebendo a mesma consagração popular que Huey P. Newton [1942-1989] e Eldridge Cleaver [1935-1998] gozaram quando foram presos: o primeiro tornou-se uma espécie de mártir; o segundo um célebre escritor. Fred Hampton intimidava tanto os seus antagonistas brancos e institucionalizados – aqui chefiados pelo ultraconservador J. Edgar Hoover (Martin Sheen) – justamente por conseguir estabelecer o diálogo entre comunistas, imigrantes e demais protestantes da “Nova Esquerda”. Ele era considerado ainda mais perigoso que os chineses, na época da Guerra Fria: não bastava prendê-lo – o que ocorre mais de uma vez, sob falas acusações – mas eliminá-lo por completo. E é para isso que William O’Neal será recrutado…
Como trata-se de uma história real, um depoimento filmado do verdadeiro William O’Neal aparece na seqüência final, pouco antes de sabermos que ele suicidou-se, quando este foi exibido na televisão, em 1990. A esposa de Fred Hampton e seu filho ainda estão vivos e seguem dando continuidade ao seu trabalho militante, confirmando o que ele fala num encontro com seus irmãos de causa, após sair da prisão: “eles podem até matar um revolucionário, mas não a revolução”. As frases de efeito pronunciadas pelo personagem são imponentes, de modo que a sua futura esposa Deborah (primorosamente vivificada por Dominique Fishback) aproxima-se dele justamente por considerá-lo um poeta, em razão de ambos lerem bastante. Não por acaso, Fred cita um apropriado aforismo maoísta: “guerra é a política com derramamento de sangue; política é a guerra sem derramamento de sangue”. Sendo diuturnamente obrigado a recorrer a uma variante urbana da primeira, é a segunda opção que ele preferia!
A despeito da poderosa carga ideológica do roteiro e de o diretor também ser negro, o filme não é meritório apenas por causa de seu discurso: conforme mencionado anteriormente, “Judas e o Messias Negro” é uma obra que obedece a convenções precisas de típicos gêneros norte-americanos, contando com uma elaboradíssima direção de fotografia, na qual a luz que provém das aberturas ou frestas de portas e janelas é comumente estourada, como se uma invasão branca estivesse prestes a acontecer o tempo inteiro. A canção interpretada por H. E. R. [“Fight for You”] durante os créditos finais foi também indicada ao Oscar. Um trecho combativo de sua letra precisa ser aqui citado: “toda a fumaça no ar/ Sinta o ódio quando eles olham/ Toda a dor que suportamos/ Oh, é melhor você tomar cuidado/ Suas armas não jogam limpo/ Tudo o que temos é uma oração/ Estava tudo em seus plano/ Lave o sangue de suas mãos”. O filme é exatamente sobre isso!
Num dos diálogos, o agente Roy tenta convencer William de que os Panteras Negras e a organização Ku Klux Klan agem de maneiras idênticas, em sua “incitação contínua ao ódio”. Investigando-se as ações de ambos os grupos, perceber-se-á facilmente que a comparação é criminosamente equivocada, mas faz parte de um tipo de guerra de narrativas que ainda hoje é utilizada. No caso brasileiro, lembremos do infame editorial do jornal O Estado de S. Paulo, “Uma escolha muito difícil”, no qual Jair Bolsonaro e Fernando Haddad eram equanimizados em seus defeitos na época das eleições presidenciais de 2018, no Brasil. O resultado desta comparação malevolente é precisamente o que o filme combate, ao defender que o poder existe quando o povo está junto. Definitiva e infelizmente, não é o caso do bolsonarismo!
Wesley Pereira de Castro.