EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

É urgente falar de urgências médicas

É urgente falar de urgências médicas

Nas últimas semanas temos assistido a repetidas notícias a relatar números avassaladores de acessos aos serviços de urgência nacionais. Ano após ano esta sentença repete-se, originando demonstrações públicas de desagrado por parte dos profissionais de saúde e utentes. A aparente ausência de soluções desmotiva os profissionais que se sentem exaustos face à degradação das condições de trabalho. Esta realidade está espelhada nas conclusões de um artigo publicado em 2016, na Acta Médica Portuguesa, que menciona que 21,6% dos profissionais de saúde apresentaram burnout moderado e 47,8% burnout elevado entre 2011 e 2013. A importância deste tema implica uma reflexão cuidada, tendo por base a experiência empírica de quem se dedica aos cuidados de saúde, mas também os dados estatísticos que, felizmente, dispomos. Exerço como médica numa unidade de saúde familiar, nos cuidados de saúde primários, mas também num serviço de urgência hospitalar. Esta experiência permite-me ter um pé em cada lado da barricada e sentir o terreno lamacento de ambas as realidades.


Nos primeiros dois meses do ano de 2022 tivemos 862160 admissões nos serviços de urgência nacionais. 36% dos casos foram triados com pulseira verde (doentes considerados pouco urgentes) e 2% triados com pulseira azul (doente não urgente), comparativamente a 2019, houve um aumento de 3% e 1%, respetivamente. Temos, assim, um aumento de admissões de doentes que não teriam indicação de recorrer ao serviço de urgência e, como bem se tem discutido, deveriam ser atendidos em contexto de cuidados de saúde primários. A análise destes dados faz-nos supor que não existe resposta nos centros de saúde nacionais. No entanto, os dados dizem-nos que, em Janeiro e Fevereiro de 2022, foram registadas 544169 consultas de situação aguda, nos cuidados primários, que representaram 6% da sua atividade assistencial. Em Portugal, no seu conjunto, o serviço nacional de saúde teve quase um milhão e meio de acessos por motivos de doença aguda nos dois primeiros meses do presente ano, segundo os dados publicados no portal online do Serviço Nacional de Saúde.

É inevitável concluir que há uma importante necessidade de reformular a gestão e organização do acesso aos serviços de urgência e emergência, que passa por melhorar e reforçar os mecanismos de triagem e orientação dos doentes. Temos de tomar medidas organizacionais para melhorar a gestão da oferta assistencial que já existe. No entanto, de nada vale ter oferta assistencial se não for usada em consciência. Tenho de tocar na ferida e lembrar que pouco se fala na relação inequívoca que existe entre iliteracia em saúde e o mau uso dos serviços. Em 2017 foi publicado, na Acta Médica Portuguesa, um estudo que concluiu que três em cada quatro portugueses possuem literacia em saúde inadequada, valores superiores aos observados em outros países europeus. O documento “The Future for Health”, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2014, aponta que os doentes com patologias crónicas que frequentam programas de literacia em saúde recorrem menos a atendimentos de urgência. Optar por medidas imediatas sem planeamento em educação é esquecer o alicerce de todas as restantes decisões estruturais. Os números mostram que o acesso inadequado aos serviços está em crescimento e que estamos a limitar e atrasar o acesso a cuidados de doentes graves. Um estudo publicado em Portugal, em 2018, na revista Referência, sobre os determinantes do acesso ao serviço de urgência por utentes não urgentes, demonstrou que, numa amostra de doentes, a sua maioria, apesar de ter acesso ao médico de família, justificou a ida por considerar que a sua doença merecia o recurso a cuidados diferenciados e que, assim, também poderia realizar exames no próprio dia.

Não podemos perpetuar o acesso a consultas de doença aguda nos cuidados primários para gestão de doenças crónicas, mostrar exames não urgentes ou tratar de burocracias sob o mote de ser mais célere. Nem podemos normalizar que se recorra ao serviço de urgência por episódios de doença com carácter pouco ou não urgente enquanto um doente, com possível patologia ameaçadora de vida, fica horas à espera que lhe sejam prestados cuidados dignos.

O propósito desta reflexão não é culpabilizar o utente que apenas procura obter os melhores cuidados tendo por base as suas crenças. Esta análise surge para salientar a responsabilidade que é de todos. A solução passa por gerir os serviços e o seu acesso de forma mais eficiente, investir na sensibilização para um uso criterioso dos mesmos e limitar a propagação de publicidade e informação sem sustentação científica. Nenhuma mudança de paradigma se alterará sem que se invista, simultaneamente, na educação da população e na gestão inteligente dos serviços. É urgente juntar à mesa decisores, responsáveis políticos, profissionais e utentes para implementar políticas de saúde que permitam continuar a garantir a qualidade e universalidade no acesso ao serviço nacional de saúde.

Imagem de capa: Domínio público, de Tung Nguyen por Pixabay 

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]