Tudo bem, admitimos que há uma provocação um tanto exacerbada neste questionamento titular, mas ela não é desprovida de sentido: afinal, a despeito da gritante irregularidade qualitativa em sua filmografia, o prolífico cineasta norte-americano Oscar Micheaux [1884-1951] ainda é desconhecido por boa parte dos cinéfilos. Até mesmo o seu pioneirismo empreendedor, reconhecido tardiamente pelos teóricos, é comumente atravessado pela celeridade enciclopédica nas menções à sua obra…
No segundo capítulo [“A expansão mundial do estilo (1918-1928): fábricas de filmes e visão pessoal”] de sua mui elogiável “História do Cinema: dos Clássicos Mudos ao Cinema Moderno”, o crítico britânico Mark Cousins escreve acerca do realizador supracitado: “filho negro de escravos libertos, [ele] juntou dinheiro para os cerca de quarenta filmes que fez entre 1919 e 1948 vendendo participações em seu trabalho para comunidades e recebendo adiantamentos de reservas em cinemas voltados para negros. Seus filmes eram muitas vezes obscenos e tematicamente rudimentares, mas, ao que se sabe, retratavam temas de escravidão e linchamento, embora poucos sobrevivam”. Foi assim que muitos de nós conhecemos Oscar Micheaux!
Seu longa-metragem mais famoso, “Dentro de Nossos Portões” (1920 – vide fotograma), foi inserido no conceituado guia “1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer” organizado por Steven Jay Schneider, o que aumentou a nossa curiosidade acerca de sua obra. Produzido como resposta ao racismo hediondo do clássico “Nascimento de uma Nação” (1915, de D. W. Griffith), esta obra apresenta situações bastante semelhantes, no mesmo contexto histórico, mas sob o prisma dos negros agredidos. Gerou muita controvérsia, obviamente. Mas revelou um ‘auteur’ ainda hoje obscuro, para além da mediocridade formal de vários de seus trabalhos.
Na produção italiana “Oscar Micheaux, o Super-Herói do Cinema Negro” (2021, de Francesco Zippel) – exibida no Festival Internacional de Cannes, em 2021, e no último dia da vigésima sétima edição do festival de documentários É Tudo Verdade, em abril de 2022 –, um pastor religioso define o cineasta, em seu sermão inicial, como “uma espécie de Spike Lee, antes que Spike Lee sequer existisse”. É mais que suficiente para que desejemos aprender sobre ele…
Ainda que a montagem deste filme obedeça a parâmetros televisivos, ele cumpre a contento as suas expectativas biográficas: explica que, por ter nascido na mesma cidade [Metropolis, Illinois] que consagrou o personagem fictício Clark Kent, este diretor não recebeu nenhuma estátua local, ao contrário do Super-Homem das histórias em quadrinhos. Mas teve uma importância definitiva na realização de filmes direcionados aos espectadores afro-americanos, de modo que tornou-se uma influência cabal não apenas para o próprio Spike Lee, mas também para nomes como Charles Burnett, Melvin van Peebles, Cheryl Dunye e Shaka King. Um destes cineastas aparece rapidamente no trecho final do filme, confirmando tal afirmação.
Como trata-se de uma produção de aparente baixo orçamento, este documentário destaca-se muito mais pelo levantamento de dados que por suas virtudes intrínsecas. Exceto por um restaurador da Cinemateca de Bolonha, todas as entrevistas são em inglês, desde as falas do ‘rapper’ Chuck D até o breve depoimento do ator Morgan Freeman, passando pelo fotógrafo Haskell Wexler [1922-2015], pelo pesquisador acadêmico Richard Peña, pelo roteirista Kevin Willmott [que recebeu um Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por “Infiltrado na Klan” (2018, de Spike Lee)] e pela jovem diretora Amam Assante, que afirma que “nenhum filme merece ser assim considerado enquanto não encontra o seu público”. Os de Oscar Micheaux foram bem-sucedidos nesta seara, e, por mais que ela relute em pronunciar que ele era “um artista à frente de seu tempo”, vários são os argumentos em defesa de sua extrema habilidade, no que tange ao autofinanciamento produtivo.
Após trabalhar como carregador de trens, onde interagia com passageiros ricos e brancos, Oscar Micheaux foi exitoso na aquisição de alguns bilhetes que loteria que garantiram-lhe alguns lotes de terra no Estado norte-americano de Dakota do Sul. Logo estava publicando seus próprios romances e iniciando a realização de filmes mudos, entre eles o já citado “Dentro de Nossos Portões”. Os embates raciais eram evidentes em seus enredos, mas ele também ousava tematizar as traições cometidas por determinados membros das comunidades negras, como ocorre com o protagonista de “Corpo e Alma” (1925), um presidiário em fuga que finge ser um reverendo, a fim de usurpar o dinheiro dos fiéis. Trata-se de um de seus melhores filmes, inclusive.
Com a chegada do som cinematográfico, em 1927, Oscar Micheaux encontrou muitas dificuldades pra dirigir seus atores, de modo que os diálogos de seus filmes falados soam deveras artificiais – para utilizar um termo anacrônico porém preciso, ele é um antecessor heterossexual do que viria a ser conhecido como estética ‘camp’. Entretanto, as suas boas intenções morais são sobressalentes, conforme percebemos nas intrigas policiais ou melodramáticas – permeadas por muitos números musicais – de filmes como “Exilado” (1931), “Dez Minutos para Viver” (1932) ou “Direito Inato” (1939).
Cenas destes filmes são abundantes no documentário em pauta, que reserva também bastante espaço para “Murder in Harlem” (1935), então em processo de restauração por uma cinemateca italiana. São peças fílmicas repletas de defeitos, mas assertivas no direcionamento de questões e atrações para o seu público-alvo, até então segregado, os negros estadunidenses. Neste sentido, ainda que ele revele-se inapto nalgumas funções que acumula (Oscar Micheaux é um verdadeiro faz-tudo cinematográfico!), é um artista que deve ser reverenciado e lembrado. Em filmagens raras, compartilhadas no filme, vemo-lo em cena, interagindo com seu elenco e membros da equipe técnica. A vontade de aplaudi-lo de pé é imediata!
Wesley Pereira de Castro.