Por mais proveitosos que sejam os festivais de cinema, no que tange à descoberta de novos títulos e ao acompanhamento pioneiro de obras que serão debatidas a posteriori, há um aspecto problemático que deve ser trazido à tona: as reflexões sobre os filmes ficam cerceadas pelo viés quantitativo destes eventos. O requisito da celeridade, essencial ao Jornalismo, entra em conflito com a necessidade de imersão, que é um componente elementar das melhores críticas artísticas. Rever é ainda mais indispensável que ver, concordam os apaixonados especialistas!
Numa rotina produtiva atravessada pelos ritmos contraditórios da contemporaneidade, a sanidade avaliativa aconselha as revisões providenciais, sobretudo dos clássicos hollywoodianos – que, em seus fundamentos estilísticos (e industriais), dizem muito sobre as condições gerais da Sétima Arte, amplamente assimiladas pelo Capitalismo. “Quando ouço alguém falar em ‘cultura’, puxo logo o meu talão de cheques”: eis o clichê certeiro dito sobre os grandes magnatas cinematográficos da fase áurea de Hollywood!
Vencedor do Oscar de Melhor Diretor por “Gigi” (1958) – e anteriormente indicado pelo musical “Sinfonia de Paris” (1951) –, o norte-americano Vincente Minnelli [1903-1986] realizou em 1952 a obra-prima dramática “Assim Estava Escrito”, que sintetiza com maestria os cacoetes produtivos que engendraram a magnificência dos filmes estadunidenses, até a eclosão dos Cinemas Novos internacionais, a partir da década de 1960. Era a época dos grandes gêneros, das superproduções, do ‘studio’ e do ‘star system’. E é tudo brilhantemente retratado neste longa-metragem, cujo título original é ‘The Bad and the Beautiful’ [“O Bruto e a Bela”], mas foi batizado em Portugal como “Cativos do Mal”. Afinal, cada país incutia nos títulos dos filmes chamarizes específicos para suas audiências nacionais…
Indicado a seis prêmios Oscar – apesar de não ter sido mencionado nas categorias principais – ele recebeu cinco estatuetas: Melhor Direção de Arte (em preto-e-branco), Melhor Fotografia (em preto-e-branco), Melhor Figurino, Melhor Roteiro e Melhor Atriz Coadjuvante (para Gloria Grahame, que aparece menos de dez minutos em cena). Todos os prêmios foram sobremaneira merecidos nesta excelente abordagem sobre autocrítica hollywoodiana, o que tornou-se recorrente nalgumas obras realizadas na década de 1950. Todos os parâmetros industriais são minuciosamente escrutinados neste filme, a começar pelas relações tumultuosas entre os membros da equipe. “Alguns dos melhores filmes da história foram realizados por pessoas que se odiavam”, diz o protagonista Jonathan Shields (Kirk Douglas), o que é referendado por seus companheiros de profissão. Esta ótima interpretação masculina, inclusive, foi a sexta indicação do filme, mas quem venceu na categoria foi Gary Cooper, por “Matar ou Morrer” (1952, de Fred Zinnemann), também merecido. Bons tempos, dizem.
O enredo obedece a uma fluência mankiewicziana, em que um encontro no presente faz com que três personagens relembrem os conflitos com o protagonista: o produtor Jonathan Shields tenta restabelecer contato com um diretor, uma atriz e um roteirista, mas é rejeitado pelos três. Cabe a seu financiador Harry Pebbel (Walter Pidgeon) a tarefa de reuni-los e esforçar-se para convencê-los a, pelo menos, ouvir a proposta em pauta. Mas cada um deles tem motivos veementes para nunca mais aproximar-se de Jonathan!
Quem começa a narrar as tramas interligadas é Fred Amiel (Barry Sullivan), um diretor ilustre que relembra quando conheceu o difamado protagonista, num enterro: ciente de que seu pai, também produtor, era odiado por todo mundo, Jonathan paga a várias pessoas para que finjam estar comovidos no funeral – entre eles Fred, que vocifera contra o falecido. Jonathan ouve e, assim, iniciam uma conversa que, apesar de agressiva, logo se converte numa parceria fecunda: após convencer Harry a substituir uma dívida de jogo por uma contratação funcional, Jonathan torna-se um hábil especialista em filmes B. “Naquele tempo, era barato viver em Hollywood, mas não conseguir um emprego”, comenta Fred. Ambos tornar-se-ão muito bem-sucedidos e famosos pela maneira inventiva como contornam os problemas de orçamento. Até que surge a primeira grande traição de Jonathan…
É a atriz Giorgia Lorrison (Lana Turner) quem continuará o relato, a partir de suas próprias memórias: ela conheceu Jonathan quando ele visitava a residência abandonada onde ela estava morando, onde faleceu o seu pai, também ator. Herdeira de seu alcoolismo, Giorgia tem dificuldades para afirmar-se profissionalmente, no início de sua carreira, até apaixonar-se por Jonathan, que prefere ter “uma estrela, ao invés de uma esposa”. A segunda grande traição é, desde já, anunciada, enquanto outros aspectos controversos das filmagens são expostos: os arroubos coléricos dos diretores, a arrogância de técnicos variegados (como iluminadores e figurinistas), as brigas decorrentes dos atrasos e cortes orçamentários, tudo isso faz parte da grandiosa ‘mise-en-scène’ minnelliana, que parece documentar episódios conhecidos de sua carreira. Chegamos a reconhecer diversas anedotas do período áureo das superproduções de Hollywood, inclusive algumas citações, como aquela que é proferida pelo caricato mas muito talentoso Von Ellstein (Ivan Triesault), que alega que “um filme não pode ser feito apenas de clímaces. É como se fosse um colar de pérolas sem fio”. Ótima referência hitchcockiana!
Por fim, é a vez de James Lee Bartlow (Dick Powell) iniciar o seu relato: outrora um pacato professor de Universidade que tornou-se escritor, ele é cooptado por Jonathan a auxiliá-lo num roteiro, o que aceita com relutância. Ele não quer viajar, afirmando que só consegue escrever em sua cadeira de balanço doméstica, por ter “um traseiro bastante sensível”, mas sua esposa Rosemary (Gloria Grahame) fica fascinada pelo glamour hollywoodiano, o que desencadeará uma conseqüência trágica. Mais uma grande traição é revelada, quando voltamos ao encontro inicial: será que eles aceitarão trabalhar novamente com Jonathan, depois de tudo o que descobrimos?
Em diversos momentos, identificamos que o filme – enquanto produto – obedece a tudo aquilo que ele critica, enquanto discurso moral. É como se as más ações de Jonathan fossem referendadas pela execução acertada de suas idéias fílmicas, visto que tanto Fred quanto Giorgia e James tornam-se assaz prestigiados e premiados depois que são traídos pelo produtor. A encenação de Vincente Minnelli aproveita cada aspecto do que é captado pela câmera, desde as estatuetas do Oscar em cima de uma mesa até o desenho diabólico de um personagem emoldurado numa parede, num trabalho esplêndido de direção!
A antiga Hollywood é exposta em seu racismo e machismo estruturais: as únicas pessoas negras mostradas no filme são empregadas domésticas e as mulheres são tratadas como “bonecas” ou “vadias”, enquanto os homens são “senhores”. Ainda assim, o filme coaduna-se à quintessência da arte cinematográfica: “Jonathan é muito mais do que um homem, ele é uma experiência”, comenta Fred em dado momento. “Ele é um instaurador de hábitos. Se fosse possível engarrafá-lo, ele tornar-se-ia um produto bastante vendável”: concordar com isso é ser conivente, dada a malevolência evidente deste sistema produtivo? Ficam o questionamento e os aplausos de pé, direcionados a este clássico impecável!
Wesley Pereira de Castro.