Malgrado não ser amplamente conhecido por seus méritos na produção e lançamento de filmes, Sergipe, o menor Estado do Brasil em dimensões geográficas (com apenas vinte e um mil novecentos e dez quilômetros quadrados), obteve algumas láureas relevantes na seara do curta-metragem: além de haver pelo menos uma obra-prima incompreendida e censurada [“O Beijo” (1980, de Yoya Wurch), protagonizado pela pioneira Ilma Fontes (1947–2021)], produções sergipanas, geralmente universitárias, vêm chamando atenção em festivais importantes, como “Abjetas 288” (2021, de Júlia da Costa & Renata Mourão), eleito o melhor curta-metragem numa das seções da Mostra Tiradentes) e “Ímã de Geladeira” (2022, de Carolen Meneses & Sidjonathas Araújo), que recebeu Menção Honrosa no Festival de Gramado. Por isso, é motivo de grande noticiabilidade que o documentário em longa-metragem “Velho Chico, a Alma do Povo Xokó” (2024, de Caco Souza) tenha sido selecionado para uma das mostras competitivas da quinquagésima segunda edição do Festival de Cinema de Gramado.
O orgulho sentido pelos sergipanos quanto a esta indicação, entretanto, não deve olvidar uma série de problemas constitutivos em relação à feitura do filme em pauta: em primeiro lugar, salta aos olhos a contratação de um realizador paulista, associado a trabalhos marcados por convenções genéricas, para a condução de um documentário sobre povos originários reprimidos no Nordeste, por não serem considerados etnicamente “puros”; em segundo, o título do filme explicita um direcionamento temático que torna acessória a participação daqueles que deveriam ser os verdadeiros protagonistas do relato; e, em terceiro, o academicismo formal da produção chega ao cúmulo de adotar um estilo de narração, a cargo de Edgar Martins, que assemelha-se deveras à empostação típica dos documentários produzidos até a década de 1980.
Com a enumeração dos problemas indicados, não se quer dizer que o filme seja traiçoeiro quanto às declaradas intenções protecionistas, no que tange à defesa do povo xokó, que vive na Ilha de São Pedro, no município sergipano de Porto da Folha, mas há uma inevitável frustração de expectativas, no sentido de que personalidades universitárias e brancas têm muito mais tempo em cena, além de conduzirem a perspectiva explanativa, que o povo originário celebrado titularmente. Ouvimos depoimentos de antropólogos, historiadores, procuradores jurídicos, museólogos e ambientalistas, contando as histórias que deveriam ser narradas pelos próprios indígenas. Na verdade, eles também gozam do benefício da fala, mas parece que seus relatos precisam ser “traduzidos” pelas publicações de estudiosos da Universidade Federal de Sergipe, a fim de serem referendados. O que, desde o início, instaura uma tensão interna, de cariz ideológico, em meio às boas intenções dos envolvidos na produção.
Baseado numa consistente pesquisa da jornalista Michele Amorim Becker — que também é produtora do filme e confere um valioso testemunho, destacando o impacto do assoreamento nas margens do Rio São Francisco —, que originou o argumento de Cacilda de Jesus e, a partir dele, o roteiro de Lelê Teles, este filme enfatiza os tratados acadêmicos sobre a luta dos integrantes do povo xokó para obter permissão para se estabelecer em terras que deveriam estar reservadas para eles. Porém, estas lhes foram negadas por muito tempo, em razão de inquéritos esdrúxulos acerca da identidade racial dos mesmos, por conta da mestiçagem sofrida ao longo dos anos, conforme apontado na citação do sociólogo Darcy Ribeiro (1922–1997) sobre aculturamento, num letreiro inicial. O poema escrito por uma nativa entremeia tanto os depoimentos de pesquisadores quanto de pesquisados, que nem sempre concordam acerca de alguns aspectos. Vide o instante em que a supracitada Michele Becker, além de um radialista e de um blogueiro xokó, que também é técnico em Enfermagem, compartilham a empolgação acerca da utilização da tecnologia e das redes sociais para denunciar invasões de fazendeiros e facilitar a comunicação entre parentes distantes, o que vai em direção oposta àquilo que é comentado por caciques que disseram “ter perdido as gerações mais novas para a tecnologia”; ao lamento de uma ceramista, que afirma que as pessoas jovens não se interessam mais pela confecção de artigos de barro; e à diferenciação do papel da Igreja Católica, junto aos povos indígenas, em “antes, durante e depois”, conforme dito pelo eloquente cacique Bá. Ele, inclusive, relembra com entusiasmo um casamento tradicional ocorrido no interior de uma capela, em que, após a cerimônia, a vestimenta da noiva foi entregue a um museu. Nas entrelinhas deste entusiasmo — que é uma estratégia de sobrevivência, admitamos —, um questionamento: até que ponto o desespero para seguir em frente, em termos geracionais, justifica as concessões ao salvacionismo branco?
Neste ponto da observação, o filme revela situações mui problemáticas, na maneira como ele é conduzido. Citamos como exemplo a declaração reverente do procurador aposentado Evaldo Fernandes Campos, responsável por uma importante medida jurídica que concedeu restituição de posse ao povo xokó e que foi definitiva para a demarcação da terra caiçara, ou a celebração das atividades na escola indígena nomeada em homenagem a Dom José Brandão de Castro (1919-1999), que foi um bispo progressista na Diocese do município sergipano de Propriá. Obviamente, é digno de aplausos e menções o tipo de educação praticado nesta escola, em que as tradições indígenas são respeitadas e ensinadas, mas a falta de questionamento quanto ao nome da instituição surge como epítome de todo o documentário: quando o Cacique Bá diz que “ser índio não é apenas andar descalço e ser privado do mundo” mas “se defender contra quem faz faculdade para nos enganar”, o seu discurso entra em conflito com a maneira oficializada com que o historiador Antônio Lindvaldo Sousa destaca a relevância do “cultivo da flor da identidade em relação aos mais novos”. A trilha musical do competente Ricardo Vieira, que não dialoga com a sonoridade típica do povo abordado, surge como uma metonímia geral deste problema, afinal comum à maneira como os clamores de membros das consideradas “minorias sociais” dependem de representantes institucionais brancos para serem ouvidos, reproduzidos e ampliados. Isso implica em reclamar da existência do filme e de como o projeto foi concretizado? Sim e não. É ótimo que ele tenha sido produzido e que esteja levando uma mensagem ainda urgente a outras regiões do Brasil, mas que os indígenas sejam coadjuvantes do próprio relato é algo que precisa ser discutido e problematizado. Afinal, como conclui o poema lido ao longo da projeção, os xokós sempre estiveram ali!
Wesley Pereira de Castro.
Uma resposta
O testo muito bem redigindo e elaborado.