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Do confinamento, da culpabilidade, da tristeza que se torna alegre quando a alegria é submergida pelo que entristece

Do confinamento, da culpabilidade, da tristeza que se torna alegre quando a alegria é submergida pelo que entristece

Infeliz e inevitavelmente, a noticiabilidade internacional reduziu-se a um assunto onipresente no final do primeiro quartel de 2020: a pandemia que atende pelo nome de CoronaVírus. A despeito da inegável periculosidade da doença e da necessidade de adotar-se medidas protetorais que exijam o confinamento populacional, o agendamento jornalístico referente aos meandros crescentes deste contágio incorrem numa desagradável (e previsível) espetacularização. Nos telejornais, só se fala sobre este assunto. Como inúmeros eventos esportivos e/ou artísticos foram cancelados, nos programas de variedades também só se fala sobre este assunto. Escolas, universidades e demais instituições de ensino precisaram suspender as suas aulas. Mas a população precarizada segue obrigada a ir para o trabalho…

Não obstante a doença ter manifestado-se inicialmente na China, foi na Itália que atingiu o seu píncaro informativo e contaminador, logo espalhando-se por países de todos os continentes. E, à guisa de enfrentamento, convém trazer à tona um subgênero cinematográfico abundante na Itália: os filmes sobre zumbis!

Nascido em 1927 e falecido em 1996, o romano Lucio Fulci configura-se como um dos mestres deste subgênero, tendo realizado vários clássicos, valorizados até mesmo por quem não aprecia filmes de horror. Ao abusar da carnificina, dos corpos putrefatos, dos mortos-vivos que desejam alimentar-se de cérebros humanos e das lendas sobre reencarnações maléficas, Lucio Fulci não obliterava os caracteres formais nem subestimava as propriedades de reinvenção técnica em seus filmes de baixo orçamento. Era um verdadeiro esteta. E, num cotejo metonímico com a situação mundial hodierna, recomendamos o extraordinário “Pavor na Cidade dos Zumbis” (1980).

Tramaticamente situado numa cidade ficcional norte-americana, Dunwich – supostamente construída sobre as ruínas moralistas de Salém –, o enredo deste filme não perde tempo com explicações dispersivas: inicia-se com uma imagem de forte impacto, o suicídio por enforcamento do padre Thomas (Fabrizio Jovine), que é sentido à distância pela jovem Mary (Catriona MacColl), que participa de uma sessão espírita, onde demonstra suas capacidades mediúnicas. Fica tão apavorada com o que vê – as conseqüências maléficas do referido suicídio – que aparentemente morre de medo, literalmente. A polícia chega para investigar a situação, sem acreditar no misticismo inerente, e dá o caso por encerrado, malgrado os policiais assustarem-se com chamas misteriosas que surgem no meio da sala. Mary é consecutivamente enterrada, mas logo descobrimos que ela padecia de uma crise catatônica…

Interessado nas condições excêntricas desta morte, um jornalista de nome Peter Bell (Christopher George) começa a investigar o caso, e, quando passeava pelo cemitério em que Mary fora enterrada, ouve estranhos gritos provindo da terra. É quando percebe que Mary fora sepultada ainda viva e tenta resgatá-la com uma picareta, quase ferindo-a no caixão mais de uma vez. Salva-a, afinal, e, após alguns momentos de descrença, decide auxiliá-la a encontrar a cidade de Dunwich, cujo nome descobrira na visão que quase a matou. E, nesta cidade, o cadáver revivido do padre Thomas segue espalhando terror pela cidade, fazendo com que as pessoas chorem sangue quando capturadas por seu olhar atroz. E estas pessoas são violentamente compelidas a devorarem as entranhas de seus entes queridos, desencadeando o pânico no local…

Em meio a sequências mui repugnantes de corpos em decomposição, vermes abundantes e cadáveres erguendo-se após o embalsamamento, o dilema de um personagem secundário permite-nos uma análise moral peculiar: um jovem tachado como pervertido, de nome Bob (Giovanni Lombardo Radice), é injustamente acusado de ser responsável por alguns dos assassinatos, e é torturado pelo pai de uma jovem que conversava com ele. Motivo da perseguição: Bob apreciava pornografia e divertia-se com uma boneca inflável. Em momentos de pavor, o desespero sobrevivencial eventualmente incorre em instauração de bodes expiatórios, que são maltratados de forma vilanaz a fim de aplacar a sanha punitiva de quem sente medo. Não é casual que os linchamentos tornem-se freqüentes em narrativas amedrontadoras politicamente deturpadas. E é por isso que o surto recente do CoronaVírus é tão preocupante: não tarda para que as tentativas de controle da pandemia, pelos órgãos responsáveis, desencadeie táticas reprováveis de clivagem social, prejudicando bastante as classes menos favorecidas.

Por mais generalizado que seja o pânico derivado de qualquer epidemia, as táticas de enfrentamento assumem diferentes facetas a depender das condições aquisitivas de que gozem os contaminados. No filme, o desfecho aparentemente feliz é interrompido por uma ranhura misteriosa na tela, visto que “Pavor na Cidade dos Zumbis” é apenas o primeiro de uma trilogia, cujas reminiscências serão percebidas nos filmes seguintes; na vida real, as conseqüências são radicalmente imprevisíveis, dado que a disseminação do vírus ainda está em curso, tendo chegado ao Brasil no final de fevereiro de 2020. Proporcionalmente, as mortes ainda são poucas, mas os prejuízos sociais, culturais e econômicos são imensos: os meios de comunicação de massa estimulam a falta de contato externo entre as pessoas. Beijos, abraços e apertos de mãos tornaram-se negativamente suspeitos. Nenhuma doença é tão devastadora quanto os preconceitos provenientes da ignorância!

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