No dia 08 de agosto de 2020, o Brasil superou a triste quota de mais de cem mil mortos em decorrência da COVID-19. Na mesma data, num jogo sem torcida presencial, os times Palmeiras e Corinthians disputavam a final do Campeonato Paulista de futebol. Empataram no tempo regulamentar, mas o Palmeiras foi campeão durante os pênaltis. Coincidentemente, este é o time para o qual o presidente do Brasil torce. Adivinham qual foi o foco de sua atenção e sobre qual assunto ele manifestou-se oficialmente?
A fim de não conceder ainda mais audiência ao execrável personagem acima indicado, convém enfatizarmos o assunto que realmente importa: o descaso do mesmo acerca do acúmulo de falecimentos. Para quem conhece alguma das pessoas obnubiladas nas estatísticas, não trata-se apenas de um anúncio numérico, mas da confirmação de ausências sentidas, de perdas irreparáveis, da dor de não poder rever os entes queridos…
Como seguir em frente, quando, ao nosso redor, é tudo indício de angústia? Como continuar firme, na feitura das atividades cotidianas, quando as rotinas foram subtraídas, em razão de um necessário confinamento, desdenhado ostensivamente por outrem? Como viver em meio a tanto adoecimento e tantas mortes? Não se responde a tais perguntas. Age-se.
A despeito do luto dos viúvos e órfãos e da beligerância associada ao negacionismo científico (e, por extensão, político-ideológico) dos bolsonaristas, a manutenção da sensibilidade e os incrementos educacional e cultural são emergenciais, úteis à possibilidade de sobrevivência e/ou à garantia de continuidade na Terra. Neste sentido, o retorno das partidas de futebol – quando o Brasil ainda encontra-se no pico da pandemia do CoronaVírus – talvez pudesse ser compreendido enquanto alento. Isso se não incitasse justamente as aglomerações combatidas por quem preocupa-se com o bem-estar do próximo…
No terreno artístico, são inúmeras as apresentações disponibilizadas ‘on-line’, de modo que a palavra anglofílica ‘live’ foi naturalizada: é graças às apresentações transmitidas ao vivo de cantores, dançarinos e teatrólogos que muitas pessoas estão suportando uma quarentena que estende-se por tempo cada vez mais indeterminado. A questão do Ensino a Distância [EAD] requer um debate mais delicado, pois escancara a fragmentação social que financia os interesses malévolos da extrema-direita partidária, atualmente no poder…
Como os tradicionais festivais internacionais de cinema também precisaram ser adiados, muitos deles publicizaram versões alternativas de seus catálogos na Internet, sendo o mais recente o Festival de Locarno, na Suíça, destinado primordialmente a filmes cujo estilo questiona os chavões estilísticos que patenteiam-se através da Sétima Arte. Numa edição com vistas ao “futuro dos filmes”, a programação do Festival de Locarno 2020 – que ocorre entre os dias 5 e 15 de agosto – oferta uma vintena de curtas e longas-metragens do Sudeste Asiático, numa proporção de dez filmes para cada metragem indicada.
Trazendo filmes recentes de países como Indonésia, Filipinas, Malásia e Myanmar, a seção ‘Open Door Screenings’ permite que estes filmes sejam vistos, até o limite de mil e quinhentos acessos, ao redor do mundo, durante o tempo em que estiver ocorrendo o Festival. No ano em pauta, um dos chamarizes foi a apresentação do clássico birmaniano “Tender are the Feet” (1972, Maung Wunna), em versão restaurada.
Filmado em preto e branco e com visível inspiração das estórias de amor indianas, este filme serve-se de exuberantes números musicais para narrar o encontro apaixonado entre um percussionista e uma dançarina que deseja ser atriz de cinema. O primeiro junta-se à trupe dela depois que é humilhado por uma dançarina anterior, com quem teve divergências profissionais. Em razão disso, os contatos iniciais entre o impetuoso Sein Lin (Zaw Lwin) e a bela Khin San (San San Aye) são marcados por provocações. Pouco a pouco, ambos começam a entender-se e trabalham muito bem juntos, de modo que ele compõe para ela a canção que intitula o filme. No refrão, a defesa do labor artístico: não importa o quão calejados fiquem os pés de uma dançarina, a fim de agradar o seu público, ela há de suportar a dor. É o que costuma acontecer entre os grandes intérpretes.
Em dado momento da narrativa, Sein Lin consegue fazer com que Khin San reencontre um amor de infância, agora trabalhando como produtor cinematográfico. É a chance que ela esperava para mudar-se para a capital do país, Rangum, onde converte-se numa grande estrela. Num primeiro instante, os dois apaixonados lamentam que, para se levar a cabo algo que é desejado, precise-se abandonar algo de que também se gosta. Após alguns contratempos românticos e quase melodramáticos, o desfecho demonstra que as paixões não precisam ser excludentes…
Dentre os curtas-metragens apresentados, um dos mais surpreendentes talvez seja o indonésio “Friday on Noon” (2016, de Luhki Herwanayogi). Na trama, o dilema de uma travesti muçulmana que desespera-se ao perceber que está no momento de realizar as orações de sexta-feira, obrigatórias para todos os homens. Daí por diante, somos apresentados a uma sucessão de humilhações que ultrapassa as barreiras nacionais e religiosas. Para a protagonista, o simples ato de ir ao banheiro converte-se num dilema atroz, em razão da incompreensão alheia. Imagina carregar sobre o corpo os traços indumentários de uma subversão que não anula a heterodoxia da fé…
Nas demais seções do Festival de Locarno 2020, uma retrospectiva afetiva de filmes escolhidos por realizadores célebres e a categoria ‘Pardi de Domani’, onde pode-se assistir a curtas-metragens realizados por diretores estreantes dos mais diversos países. Entre eles, um brasileiro: o goiano Rafael Castanheira Parrode, que apresenta o experimental “Memby” (2020). Vale a pena conferir!
De volta a “Tender are the Feet”, um adendo importante sobre as suas filmagens: elas foram realizadas em meio a extremas dificuldades, visto que Myanmar enfrentava uma ditadura militar bastante violenta. Isso explica a precariedade técnica de muitas seqüências. Enquanto pessoas morriam, na vida real, nas telas, os personagens cantam e dançam, exortando a possibilidade de uma felicidade ativa. Isso implica em desdém para com os falecidos? Muitíssimo pelo contrário: comparemos os exemplos mencionados nesse texto. A História absolve quem faz jus a ela!