Existem diversos tipos de censura: há um tipo que é explícito e ditatorial; há outro que é tácito e corroborado pela maior parte da população. Não se excluem e não são os únicos. E ambos foram despejados sobre o lançamento comercial do longa-metragem “Marighella” (2019, de Wagner Moura), que foi exibido, fora de competição, no Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019, mas teve a sua distribuição nos cinemas brasileiros interditada por uma indisfarçável perseguição política. O bolsonarismo impediu que o filme atingisse a maior parte de seu público, infelizmente.
Não obstante parecer um truísmo, esta última frase é importante enquanto denúncia: afinal, o modo como o filme serve-se de convenções do cinema de ação poderia ter-lhe assegurado um sucesso perceptível de bilheteria. O roteiro beira o didatismo em diversos momentos, de maneira que o filme talvez seja mais adequado para quem não conhece tanto o personagem biografado, visto que trata-se de uma adaptação “livre” do livro “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, de Mário Magalhães…
Na abertura do filme, há um letreiro que explica que o baiano Carlos Marighella [1911-1969] foi considerado “o inimigo número 1 do país” durante o período mais acirrado da Ditadura Militar no Brasil. Procede: conforme o filme indica, o personagem real era, de fato, neto de escravos sudaneses. Mas pouco é mostrado sobre o homem-Marighella: conhecemos, ao invés, o guerrilheiro-Marighella, a partir de uma breve situação ocorrida em 1964 (quando ele foi baleado e preso, dentro de um cinema, após passar uma tarde com o filho, numa praia) e de eventos transcorridos entre 1968 e a ocasião de seu assassinato, em 04 de novembro do ano seguinte.
Para quem quiser saber mais sobre os eventos pessoais da vida deste importante personagem brasileiro, recomenda-se um documentário homônimo, realizado em 2012 por sua sobrinha Isa Grinspum Ferraz, que é graduada em Sociologia e Filosofia pela Universidade de São Paulo. Neste filme, sabemos que uma das características marcantes de seu tio era ser possuidor de muito “xurupitó”, palavra que designa um carisma que era também sexual. Isso fica implícito no filme: Carlos Marighella é sobremaneira respeitado enquanto liderança política e em sua eloqüência poética. Quando pedem a sua opinião sobre uma determinada atividade, ele responde: “quem sabe dançar, samba; quem não sabe, sai. Não preciso autorizar ninguém que deseje realizar uma ação revolucionária”. Quando as intenções individuais vêm à tona, entretanto…
Apesar de ser o protagonista do filme que leva seu título, Carlos Marighella não vive isolado. Pelo contrário: é cercado de jovens motivados – e atravessados por inevitáveis contradições sociais –, que o ajudam a pôr em prática os seus ataques contra a violência ditatorial. Porém, o filme parece duvidar da melhor abordagem ativista: por vezes, adere às táticas de guerrilha baseadas na lógica do “olho por olho, dente por dente” (em dado momento, o personagem-título olha para a câmera e assume-se raivosamente enquanto terrorista); na grande maioria das cenas, opta por digressões familiares que não funcionam a contento. As cenas que mostram o cotidiano indeciso do filho adolescente de Marighella, na cidade de Salvador, por exemplo, são despojadas do vigor dramatúrgico pretendido. Soam emocionalmente desenxabidas. Enquanto isso, na cidade de São Paulo, o guerrilheiro conclama: “quem não reage, arrasta-se”!
As várias cenas de perseguição e tiroteio do filme são bem dirigidas: a câmera na mão e os planos longos demonstram que o cineasta estreante apreendeu as técnicas dos diretores com quem trabalhou. Porém, o filme padece por não erigir um discurso próprio, nem quando tenta referendar o que inspirava os personagens sessentistas (vide o olhar final de uma garota aguerrida, com uma metralhadora em mãos), nem quando tenta transladar as reivindicações protestantes das gerações atuais (como no momento constrangedor em que um seminarista explica aos guerrilheiros o porquê de a negritude de Jesus Cristo ter sido obnubilada pela Igreja Católica). Em seus truques de gênero, o filme parece advogar a necessidade de resgatar o patriotismo por parte da esquerda política. Como isso é demonstrado: a partir de uma cantoria efusiva do “Hino Nacional Brasileiro” durante os créditos finais – que, lamentavelmente, soa pouco inspirada. Isso vale também para o instante em que um entrevistador estrangeiro pergunta a Carlos Marighella se ele era marxista, trotskista ou maoísta. Ao que ele responde, sintética e peremptoriamente: “eu sou brasileiro”!
Mas falemos sobre os importantes méritos do filme: a direção é muito boa, a trilha musical aproveitou-se magistralmente da canção “Banditismo por uma Questão de Classe”, de Chico Science & Nação Zumbi, e, com exceção da participação pouco expressiva de Luiz Carlos Vasconcelos, as interpretações são esforçadas e homogêneas. Destaquemos algumas: Bruno Gagliasso está implacável como um policial vilanaz; Humberto Carrão, Bella Camero e Jorge Paz entregam-se com intensidade aos personagens a quem emprestam os seus prenomes; Herson Capri e Adriana Esteves possuem bons momentos em cena; e Seu Jorge encarna o protagonista com vivacidade, por mais que tenham reclamado que os seus caracteres raciais não fossem de todos condizentes em relação ao guerrilheiro. O que não atrapalha: os diálogos mencionando racismo foram inteligentemente abordados pelo roteiro. Nesta decisão pelo protagonismo negro, o filme acerta em cheio, sem que essa seja a tônica dominante de seu discurso.
Voltando às contradições e/ou debilidades do enredo: ao emular a eficiência de clássicos hollywoodianos da década de 1970, em que personagens considerados subversivos poderiam ser protagonistas, desde que morressem violentamente – a fim de desencorajar a identificação efusiva com a platéia –, o filme possui uma quebra (ou melhor, intensificação) drástica de ritmo no quartel final, quando as mortes e cenas de tortura acumulam-se de maneira previsível. Os agentes ditatoriais apregoam que venceram, enquanto os resistentes aprisionados alegam que não. Ouvimos, então, a voz tonitruante de Seu Jorge, suavizada, transmitindo um conselho comportamental para o filho de Carlos Marighella, que estende-se a qualquer um dos espectadores: “seja amoroso, leal e honesto – e só!”. Serve!
Wesley Pereira de Castro.
2 respostas
excelente matéria, parabéns!!!
Muitíssimo obrigado.
Sigamos firmes!