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“Desculpe-me se não te estendo a mão, mas eu venho do estábulo”, ou: mesmo quando é triste, podemos dizer que é ‘gay’?

“Desculpe-me se não te estendo a mão, mas eu venho do estábulo”, ou: mesmo quando é triste, podemos dizer que é ‘gay’?

Ainda que não seja um subgênero cinematográfico, a etiqueta “filme gay” é utilizada com alarmante freqüência nalguns fóruns cinéfilos. Misturando desde enredos clássicos até romances juvenis contemporâneos, passando pelos inevitáveis engodos eróticos, são variegados os títulos que são divulgados através desta etiqueta. Afinal, o que há de comum entre “Morte em Veneza” (1971, de Luchino Visconti), “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005, de Ang Lee) e “Com Amor, Simon” (2018, de Greg Berlanti), para ficar em três títulos recorrentemente mencionados quando abordamos as questões homossexuais? São filmes que derivam de origens literárias e tendências produtivas radicalmente distintas!

Enfrentada esta primeira percepção, nota-se que, em meio ao rótulo vendável supracitado, encontramos títulos que, em sua diversidade de temas e abordagens, servem para acalentar um público que ainda é carente de acolhimento, por mais que, em tese, a homofobia não seja tão gritante hoje em dia quanto foi noutras épocas…

É assim que costumamos descobrir produções eventualmente menosprezadas pelos críticos – exceto por seus caracteres pederásticos – como “O Sabor do Grão” (1986, de Gianni Da Campo). Realizado em homenagem ao cineasta existencialista Valerio Zurlini [1926-1986], este filme possui uma seqüência breve mas deveras assertiva, no que tange à definição de seus interesses: o diálogo em que o diretor da escola em que o protagonista trabalha o repreende por apresentar o romance ‘Cronaca Familiare’ (escrito por Vasco Pratolini, em 1947) para os seus alunos, alegando que este livro requer uma maturidade emocional que não corresponde àquela demonstrada pelos adolescentes matriculados. Não por acaso, este romance foi justamente adaptado por Valerio Zurlini, sob o título “Dois Destinos” (1962). Tudo se interliga, afinal.

Voltando ao enredo de “O Sabor do Grão”: trata-se de uma história de descobrimento afetivo que, em muitos aspectos, possui conotações homoeróticas, convertidas nalgo muito mais delicado por ser um relacionamento platônico entre um jovem professor (em seu primeiro ano exercendo a função) e um estudante com apenas doze anos de idade. Recém-formado, o veneziano Lorenzo (Lorenzo Lena) muda-se para um vilarejo no interior da Itália, onde conhece e afeiçoa-se bastante a Duilio (Marco Mestriner), depois que este demonstra as suas aptidões gnoseológicas e comunica que é órfão de mãe, o que faz com que ele identifique-se profundamente com uma passagem literária lida em sala de aula. Lorenzo apega-se bastante a ele, a ponto de visitá-lo em sua residência e de presenteá-lo com enciclopédias e um toca-discos…

O pai de Duilio (Paolo Garlato), que é um fazendeiro deveras modesto, sente-se agraciado por causa das visitas do professor, mas logo começa a desconfiar das intenções do mesmo, sobretudo quando a sua esposa (interpretada por Marina Vlady) suspeita que Lorenzo e Duilio estão tendo um envolvimento amoroso, que depõe criminalmente contra o mais velho dos dois. Quando vai avisar a Lorenzo que um automóvel está disponível para levá-lo para casa, a madrasta de Duilio flagra algumas breves carícias, o que engendra um desconforto que desembocará noutras situações de animosidade familiar. A chegada de Adalgisa (Elena Barbalich) – irmã mais velha de Duilio, que estuda num colégio de freiras – tornará as rusgas ainda mais evidentes, visto que ela trata a sua avó (Elisabetta Barbini) com rudeza e não demonstra tanta preocupação em relação ao câncer estomacal que causa a internação hospitalar de seu avô (Mattia Pinoli). O que estaria por detrás de tanto ressentimento?

Paralelamente, Lorenzo apaixona-se por uma mulher que conhece num trem, Cecilia (Alba Mottura), com quem envolve-se sexualmente na primeira investida, ainda no vagão ferroviário, poucos instantes após detectar o interesse erótico dela. Ocorre que Cecilia é comprometida, está prestes a se casar, o que aumenta a indecisão de Lorenzo, que não sabe como resolver as suas dívidas morais. Ao conversar com Cecilia acerca deste assunto, ela é taxativa: “faço amor com quem me apetece. Sentimentos absolutos são coisas de crianças”. Como o envolvimento com Duilio é afetado por estas crises individuais?

Cada vez mais fascinado por seu aluno – a ponto de declarar que “apendeu muito com ele” – Lorenzo responde de maneira afirmativa quando perguntam-lhe se ambos são irmãos. Evita declarar publicamente que trata-se de uma relação entre professor e aluno, já que a proximidade deles é suspeita. Ao perceber que um aluno mais velho (com dezessete anos) exibe a sua ereção em plena sala de aula, chamando a atenção dos colegas impúberes, Lorenzo o expulsa imediatamente da classe, ignorando a justificativa para o seu atraso escolar, já que precisou ajudar os pais nas tarefas rurais, desde a infância. Fica explícito, portanto, que Lorenzo é deveras imaturo na função que deseja ocupar!

Outros dilemas atravessam o roteiro, que é muito mais tormentoso e complexo do que a sua catalogação como mera estória sobre platonismo homossexual, tal qual é irrestritamente mencionado. Numa cena de beleza duradoura, Duilio pergunta a Lorenzo se ele sabe diferenciar algumas árvores, o que é estendido ao espectador, que beneficia-se de uma fotografia plácida, repleta dos tons verdes da natureza e das roupas alvas dos protagonistas. Os indícios de pureza e inocência são abundantes no filme, ainda que, frente ao patrulhamento ideológico das novas gerações de espectadores, a malevolência imaginada de seus apanágios relacionais é trazida à tona. Que tal conversamos sobre isso, em ocasiões vindouras? Este filme pouco conhecido merece ser redescoberto criticamente e debatido com seriedade.

Voltando ao subtítulo deste artigo: malgrado ser amplamente utilizado como sinônimo de “homossexual masculino”, o adjetivo ‘gay’ possui etimologia anglofílica associada à felicidade, o que, diante das opressões sociais recorrentemente sofridas por estas pessoas – que querem e merecem amar e ser amadas –, talvez nem sempre se aplique. Temos outro importante ponto de discussão aqui, de modo que também voltaremos a ele noutras oportunidades. Por ora, recomendamos com discreto entusiasmo o filme então analisado, facilmente encontrável nas pesquisas internéticas. Boa sessão!

Wesley Pereira de Castro.

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