Em razão do necessário adiamento da temporada de premiações hollywoodianas, por causa dos números ainda alarmantes de contágio pela COVID-19, produções recém-lançadas através de plataformas de ‘streaming’ gozaram o seu auge, em termos de indicações. Dentre os filmes recém-elegíveis, “O Tigre Branco” (2021, de Ramin Bahrani) destacou-se pelo modo como dividiu as opiniões da crítica: há quem o considere um ótimo filme; há quem detecte nesta obra justamente aquilo que o seu roteiro condena…
Infelizmente, este segundo aspecto é comum nas realizações do cineasta norte-americano com ascendência iraniana Ramin Bahrani: excetuando-se o belo libelo existencial que atende pelo nome de “Saco Plástico” (2009), seus filmes mais famosos confundem-se antiteticamente em relação àquilo que é difundido enquanto denúncia. Vide a crítica melodramática e chantagista à especulação imobiliária que sobressai-se em “99 Casas” (2014) ou a excrescência amorfa que resultou em sua desnecessária versão de “Fahrenheit 451” (2018). Parecia que ele tinha reencontrado o elã que o fizera ser tão elogiado, por ocasião de “Chop Shop” (2007), pelo crítico Roger Ebert [1942-2013] em seu mais novo filme, financiado pela poderosa empresa Netflix. Entretanto…
Adaptado a partir de um romance do escritor indiano Aravid Andiga, “O Tigre Branco” possui muitas similaridades rítmicas com os filmes do cineasta britânico Danny Boyle, tanto que, em determinado momento, faz uma emulação distintiva de caráter chistoso, quando o protagonista declara que não participou de nenhum programa televisivo de perguntas e respostas para poder modificar o seu destino. A referência diz respeito ao premiado “Quem Quer Ser um Milionário?” (2008, co-dirigido por Loveleen Tandan), visto que ambos os filmes acompanham a jornada sofrida de garotos pobres que convertem-se em adultos riquíssimos, mas, de fato, os rumos são distintos: “O Tigre Branco” é ainda mais fingido em sua faceta julgamental ‘for export’!
Desde a abertura, o filme conta com uma narração onipresente, supostamente direcionada, enquanto carta, a um líder empresarial chinês. Depois de uma seqüência na qual o protagonista testemunha um atropelamento, a ação é interrompida, e o narrador diz que “a melhor maneira de iniciar um enredo indiano é com uma oração”. O narrador fala em inglês, com sotaque bastante carregado, numa perspectiva dialógica que, ao mesmo tempo em que lamenta as várias décadas de dominação britânica na Índia, a exalta enquanto tentativa civilizatória num país atravessado pela miséria generalizada e pelos mais severos preconceitos de classe. Sim, o filme apresenta a Índia como um dos piores lugares do mundo, acentuando de maneira ostensivamente comparativa as desigualdades sobressalentes da população.
Muito bem interpretado por Adarsh Gourav, o protagonista Balram apresenta-nos diferentes camadas de idiotia constitutiva: a idiotia induzida (relacionada ao forte determinismo que advém do sistema de castas na Índia); a idiotia aprendida (que diz respeito ao modo como os empregados ambiciosos sobrevivem no Capitalismo); e a idiotia fingida (que explica o sucesso financeiro do personagem principal no desfecho do filme). Por detrás destas camadas, há uma personalidade complexa e sufocada, sobretudo no que diz respeito à sua sexualidade, visto que nota-se um evidente homoerotismo no modo com Balram trata o seu jovem patrão: “seria uma relação de amor permeada pelo ódio ou uma relação de ódio sob uma fachada de amor?”. A resposta será a violência, inexorável enquanto instrumento de desenvolvimento socioeconômico.
Talvez um dos maiores defeitos do filme seja justamente aquele que insurge-se como sua maior demonstração de esperteza: um humor sagaz e acelerado (mais uma vez, típico de alguns filmes britânicos contemporâneos), que justifica a pretensa amoralidade do roteiro, no que tange à conversão de vítimas em vilões (ou vice-versa), a depender das necessidades narrativas da obra. Em tese, o narrador Balram é o personagem que merece a nossa simpatia e, como tal, devemos exultar pelo modo como ele dribla as limitações inequívocas de sua classe social: “em meu país, só é possível mudar de vida através do crime ou da política”. A educação formal é uma ferramenta subaproveitada, conforme deduz-se a partir do infortúnio infantil de Balram, que é obrigado a abandonar a escola – onde destacava-se como um dos alunos mais inteligentes – para trabalhar quebrando carvão numa fábrica de chás, a fim de ajudar a pagar uma imensa dívida contraída por seu pai. E isso reverberará no destino do sobrinho que passa a viver com Balram…
O título do filme é uma das duas metáforas mais recorrentes no modo como o protagonista conta a própria história: diz respeito a uma espécie de felino que nasce apenas uma vez por geração, e é um elogio que ele recebe de um professor, ainda pequeno, ao demonstrar que sabe ler em inglês com muita habilidade. A outra metáfora é a do galinheiro abarrotado, em que, mesmo constatando a morte de seus companheiros de cárcere, os galináceos permanecem subservientes e inanes, aceitando como inelutável o destino de exploração e esquartejamento que os aguarda.
Ao término do filme – ou desde o começo, já que a maior parte do relato ocorre enquanto ‘flashback’ – Balram apenas muda de lado no galinheiro social: de oprimido, passa a ser opressor. Modificar o sistema não parece ser responsabilidade dele, o que é referendado pelo ambiente de extrema corrupção política percebido no enredo, principalmente através da aceitação de propinas por parte de uma ministra socialista, eleita de maneira entusiástica pela população menos favorecida. O cinismo do roteiro, escrito pelo próprio diretor, reitera o olhar do aproveitador externo. Com certeza, a Índia está longe de ser apenas o que é mostrado nesse filme!
Para além de todos os equívocos morais, preconceitos discursivos e loas à competitividade de um capitalismo selvagem, no qual os orientais beneficiam-se tangencialmente, “O Tigre Branco” possui seus méritos eventuais: é um interessante filme de gênero e mais uma comprovação da versatilidade comercial da Netflix, tanto que, em sua difusão internacional, o filme logo converteu-se numa das estréias mais bem-sucedidas da plataforma. O que isso deixa subentendido? Que o capitalismo permanece ofertado como mercadoria metonímica de um sistema que assimila as próprias contradições vendáveis. Sem ter lido o romance original, não se sabe o quanto isso já estava presente no ideário sinóptico de Aravid Andiga, que também é jornalista, mas, no cotejo com as obras prévias de Raman Bahrani, a vinculação é óbvia: cinismo é garantia de lucro, desde que a luta desigual entre classes permaneça exatamente como está!
Wesley Pereira de Castro.