A inaudita medalha de prata recebida pela ginasta brasileira Rebeca Andrade, na Olimpíada de Tóquio, em 2021, chamou a atenção para um doloroso aspecto ainda freqüente nos esportes: o racismo estrutural. Por mais merecida que tenha sido essa conquista, foi notado que a mesma provém de um percurso mui doloroso: de origem humilde, a ginasta apresentou-se ao som de uma música ainda bastante criminalizada, o ‘funk’. A sincronia minuciosa entre os movimentos da ginasta e as notas do “Baile de Favela” teve um efeito balsâmico: muitas garotas pobres e negras puderam identificar-se com este feito sobremaneira aplaudível. E o melhor: a ginasta também conquistou uma bem-vinda medalha de ouro, na prova de salto!
Entretanto, na mesma edição das olimpíadas, surgiram algumas denúncias de racismo – sobretudo no ambiente da Ginástica Artística – e de subvalorização dos atletas brasileiros, que obtiveram recursos insuficientes (ou, às vezes, ausentes) das autoridades oficiais do país, que enfrenta uma forte vertente de desumanização, atrelada ao bolsonarismo. Na pior das hipóteses, tanta injustiça trouxe o debate do racismo à tona: ele existe – e, infelizmente, é ainda muito recorrente!
Nessa conjuntura, a difusão de um romance contemporâneo tão primoroso quanto “Torto Arado”, escrito pelo baiano Itamar Vieira Júnior, merece exaltação: lançado em 2019, inicialmente em Portugal, este livro recebeu diversas láureas importantes, entre elas o tradicional Prêmio Jabuti, em 2020. E é uma obra que faz jus à sua fama. Narrado de maneira épica, conta as desventuras enfrentadas pelas irmãs Bibiana e Belonísia – que são filhas de escravos libertos – ao longo de algumas décadas, numa fazenda no sertão da Bahia.
O livro é dividido em três partes: na primeira delas, “Fio de Corte”, a narradora é Bibiana, que, na infância, ao brincar com uma faca muito afiada, fere a sua língua, ao mesmo tempo em que testemunha a perda do referido órgão, por causa da curiosidade de sua irmã Belonísia. Levada às pressas ao hospital, não é possível reverter a amputação glotológica sofrida por ela. Bibiana tornar-se-á, portanto, a voz acessória de Belonísia, aquela que comunicará ao mundo os anseios e insatisfações de ambas.
Filhas de um pai que tem o dom de comunicar-se com os espíritos – a quem ele chama de “encantados” –, Bibiana e Belonísia encaram o mundo através de um prisma assemelhado ao do realismo fantástico: acompanham as mortes de parentes, os malefícios causados pela seca e a opressão levada a cabo pelos patrões de seus pais, que usurpam parte considerável daquilo que é cultivado pelos empregados, em suas terras. Muito sensível, Bibiana logo desfrutará do benefício do amor carnal, assim que chega à adolescência…
Para que se perceba o quão magistral é o estilo do autor, transcrevemos um trecho que encerra o décimo terceiro capítulo da primeira parte do livro: “Naquela terra mesmo, entranhada da secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para que lhe servisse de alívio. O silêncio da ausência dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida”. Esse tom poético é dominante na obra!
A segunda parte do livro, que é homônima em relação ao seu título, é narrada por Belonísia, e acompanha as situações imediatamente posteriores ao trecho supracitado. Como ela não consegue falar, sente vergonha ao balbuciar as palavras, e uma de suas preferidas é justamente “arado”. O modo pouco inteligível com que ela pronuncia este vocábulo justifica o adjetivo acostado, que é também uma metáfora: afinal, tanto Belonísia quanto a sua irmã Bibiana constatarão as injustiças constitutivas da História brasileira, o que será ainda mais acentuado com a chegada do primo Severo, que dedica-se à luta sindical. Seu destino será similar ao de inúmeros outros camponeses. O exemplo revolucionário, idem.
A terceira parte do livro, “Rio de Sangue”, possui um caráter mais sintético: é narrada por uma das “encantadas” que dançavam nas festas promovidas pelo pai das duas irmãs narradoras. Como esta possui séculos de existência, descreve situações que testemunhou ao longo de suas várias encarnações. Fala sobre mães que matam seus filhos recém-nascidos, para que eles também não convertam-se em escravos. Explica quão cruel foi a dizimação das populações indígenas, na época das explorações em busca de pedras preciosas, e enumera os múltiplos estupros sofridos por mulheres negras, maltratadas repetidamente por seus alegados donos. Até que detém-se nos personagens descritos anteriormente e, a partir de uma pormenorizada explanação de como foi adquirida a faca rutilante da avó Donana, dá continuidade à narrativa, metonimizando episódios recorrentes no interior do país. O Brasil é um território de contínua rapacidade, em que o racismo surge como elemento ainda mais violento que qualquer favorecimento de classe social. O livro, além de ser muito bem escrito, é justamente sobre isso!
Sem que incorramos no perigo de atrapalhar o prazer do leitor que ainda não teve acesso a este excelente produto literário, acrescentamos que o desfecho do livro possui algo que segue deslindando-se na realidade ao nosso redor: fica em aberto a percepção de que muitas das agressões atávicas descritas pelo autor são legitimadas pela extrema-direita, que banaliza o sofrimento dos grupos sociais que, a despeito de sua abrangência, seguem tachados de “minorias”. E, para piorar, isso não é exclusividade do Brasil. Afinal, trata-se de um país colonizado: infelizmente, o subdesenvolvimento é um projeto bem-sucedido do capitalismo!
Wesley Pereira de Castro.