Deparei-me esta semana com a seguinte publicação, de alguém que sigo no Instagram, e que segundo esse alguém foi publicado no JN:
Nas semanas de isolamento social que ainda temos pela frente, teremos tempo suficiente para refletir sobre que tipo de país e estilo de vida queremos no pós pandemia.
É difícil escrever crónicas por estes dias sem ser-se especialista em alguma coisa; lemos os matemáticos e cientistas com os seus gráficos de curvas, médicos e enfermeiros a discorrem sobre epidemiologia, economistas que nos avisam sobre o impacto funesto que a paragem da grande máquina laboral irá ter num futuro próximo, juristas a tentarem esclarecer sobre a nova legislação que é aprovada todos os dias para fazer frente a esta crise social e política sem precedentes. E, claro, não poderiam faltar os politólogos e tudólogos que se revelam nestas alturas e que, aparentemente, sabem formar uma opinião sobre todos os assuntos.”
Fiquei um pouco preocupado…
A expressão Tudólogo teve origem – segundo percebi – em Itália e serve para classificar de forma depreciativa, irónica e jocosa aqueles que de alguma forma se assumem como especialistas sobre tudo; estou certo de que se lembram de alguns. Em termos linguísticos – e em português, entenda-se -, a palavra Tudólogo parece respeitar as regras e mecanismos da língua, formando, pela agregação de Tudo e Logos, um conceito que pretende significar aquele que é um especialista em tudo; já do ponto de vista semântico, considerando que a especialização é contrária à generalização – ao tudo saber -, esta palavra apresenta alguns problemas, sendo até desaconselhada a sua utilização. Mas não foi isto que me preocupou…
Antes de lá ir, gostaria de fazer uns quantos alertas à navegação:
Primeiro, não sou defensor dos Tudólogos; considero-os uma aberração prejudicial à informação verdadeira e real
Segundo, não conheço texto acima, para além do que aqui está reproduzido; não sei se tem continuação, se não; nem o consegui encontrar na internet…
Terceiro, a minha indignação, quanto ao mesmo, vertida mais explicitamente abaixo, resume-se ao meu entendimento interpretativo; ou seja, parece-se que se repudia os Tudólogos, e o direito à opinião, enquanto se faz uma apologia aos especialistas…
Vamos então às explicações…
O que me preocupou, na verdade, foram duas coisas…
Uma delas, foi esta atitude de um órgão de comunicação social – como um representante que é da classe -, de repente, parecer estar a repudiar a sua própria criação, valendo-se de argumentos moralistas subliminares, ao remeter para o fim do texto, com sarcasmo e ironia, esta referência a quem – certamente – fez vender muitos exemplares ou crescer audiências.
Os Tudólogos sempre foram um problema em Portugal; mais conhecido como Treinadores de Bancada.
Este ultimo termo advém do facto de o seu surgimento estar ligado ao futebol, com horas de debates sobres as estratégias dos treinadores, as atitudes dos jogadores e as decisões dos árbitros… E, enquanto por ali se mantiveram, tudo bem; o problema foi quando estas pessoas começaram também a opinar sobre outras matérias sobre as quais – de facto – não tinham competências.
O fenómeno inverso também se deu, com alguns politólogos – digamos assim – a começarem a opinar sobre desporto.
E, de súbito, surgiram os Tudólogos: gente que sabe de tudo.
No entanto, não podemos esquecer as maquias onerosas que alguns jornais e televisões investiam nestas pessoas, numa guerra de audiências ou de vendas de exemplares; roubando os Tudólogos, os Treinadores de Bancada ou – simplesmente – os comentadores uns aos outros em nome do share… E, como é evidente, num mercado em crescimento, com uma procura – ou demanda, para usar um termo Económico – em crescendo, os comentadores foram surgindo, por iniciativa própria – associada ao constante estímulo ao empreendedorismo que graça na nossa sociedade – ou por convite das próprias televisões ou jornais… Por isso, em resumo, parece-me – no mínimo – de mau tom que alguém dessa classe venha, nestes termos, referir-se à sua própria criação.
Em segundo lugar, preocupa-me a confusão que este pequenino texto possa lançar entre ser um Tudólogo e o ter uma opinião sobre tudo…
Ora vamos lá a saber: é a mesma coisa?
Não; não é.
Há que distinguir o trigo do joio, para não se começar a perseguir a liberdade de opinião; que nem em estado de emergência foi condicionada ou proibida.
Eu considero que qualquer pessoa bem informada, e inteligente, pode – e deve – formar opiniões sobre tudo aquilo que entende ser capaz e partilhá-las – se assim o entender; no entanto, opiniões são opiniões e devem ser vistas como isso mesmo. O que está errado, não é ter opiniões sobre tudo, é “vender” essas reflexões como verdades; e isso tanto é culpa de quem as escreve – no que respeita à forma e estilo – como de quem as publica – e na forma como as publica. Por isso, toda aquela eloquência bem-intencionada do texto, toda aquela parcimónia na ironia e sarcasmo, serve apenas para disfarçar que a culpa do estado a que chegámos – no que à epidemia de comentadores respeita – é toda da comunicação social que, sabendo que eram opiniões, somente opiniões – ainda que, umas, mais informadas que outras –, as «vendeu» sempre com pompa e circunstância, criando em quem as consumia – pelo menos – a ilusão da verdade.
E este problema não é de agora, como o textozinho parece querer fazer parecer; sempre existiu e sempre me arreliou imenso, porque a comunicação social, indirectamente, empoderava todos esses Tudólogos, dando-lhes tempos de antena, tornando-os influenciadores de gente menos atenta, permitindo-lhes chegar a pontos onde, antes, nem em bicos dos pés chegavam. E agora repudiam a sua criação como se nada tivessem que ver com ela; parafraseando a Greta Thunberg: «How dare you?»
Mas se a preocupação é genuína – ainda que ignorante da causa das coisas –, aqui fica o meu sentido pedido de desculpas, e ainda deixo, aqui também, o alerta à reflexão necessária sobre esta matéria; porque, para se corrigir, não basta perceber o erro: é preciso saber porque se errou para não seguir caminhos similares…
Mas – como dizia – se a preocupação é genuína, e há de facto uma inquietação com a sociedade pós-pandémica, e os caminhos que iremos trilhar, gostaria de relembrar que – antes de atacar os Tudólogos, numa espécie de catarse da imoralidade, como se neles existisse toda a perversidade que os especialistas, em teoria, não têm – se deve tomar consciência de que sobre isto que vivemos não há especialistas verdadeiros – nunca se viveu isto antes e, por isso, a experiência é uma impossibilidade – e que os comentadores e colunistas, ainda que opinem dentro da sua área de saberes, apenas estão a opinar e a validade dessa opinião – neste cenário – é igual à de todos os outros. Quanto à Sociedade Pós-Pandémica, a que aí vier, deverá saber distinguir opiniões de saberes, perder a preguiça de pensar pela sua própria cabeça, formar as suas próprias opiniões fundamentadas e, com isso – estou certo -, a pandemia de comentadores que nos atingia será ultrapassada. No entanto, a não ser que a comunicação social também mude nas suas metas e orientações, passe a focar-se mais em informar e não tanto em vender as notícias que lhe trazem as audiências e o share que lhes permita melhores contratos publicitários, parece-me que toda aquela preocupação não passa de conversa da treta.
Imagem de Bartosz Kapka por Pixabay