Em 14 de março de 2021, um domingo, diversas cidades brasileiras foram marcadas por manifestações e carreatas contra o fechamento do comércio: ainda que o número de contaminados pelo CoronaVírus continue a crescer dia após dia – na data supramencionada, a quantidade de mortos no Brasil ultrapassava duzentos e setenta e sete milhares! – os influenciados pelo negacionismo bolsonarista preferem deturpar uma concepção de extremo consumismo, tornando a saúde das pessoas menos importante que a pretensa manutenção econômica…
No mesmo dia, o filme “Os Sonâmbulos” (2018, de Tiago Mata Machado) pôde ser assistido gratuitamente no sítio eletrônico da distribuidora Embaúba. E, por mais que os dois eventos pareçam apenas circunstancialmente vinculados, um deles reflete diretamente o outro. Afinal, “Os Sonâmbulos” antevê justamente o sentimento de derrota que atinge o Brasil atual, sob o (des)governo de Jair Bolsonaro: é um ambiente de perda generalizada, de uma sensação intensa de fracasso, que vai contaminando diuturnamente a população…
Não obstante investir numa perspectiva distópica que evita identificar o tempo e o local onde os personagens locomovem-se, sabemos que trata-se de um Brasil piorado, numa derivação ficcional daquilo que adveio do golpe político perpetrado contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, quando o seu vice, Michel Temer, assumiu a sua posição administrativa. Isso é evidenciado nas notícias de jornal que um dos protagonistas recorta numa cena-chave. Numa locução televisiva, ouvimos a descrição do assassinato ainda não desvendado da vereadora Marielle Franco, que ocorreu justamente num dia 14 de março, em 2018. Nada acontece por acaso, lembremos!
Conduzido por várias vozes que bifurcam-se – quando pretendiam unificar-se numa espécie de “clube de suicidas revolucionários”, como diz um de seus integrantes – o filme possui um ritmo lento e demarcado por ‘flash-forwards’: a morte parece um destino inevitável para quase todos os personagens, num desvendamento narrativo que possui alguma similaridade com a abertura de “O Diabo, Provavelmente” (1977, de Robert Bresson). Louva-se a potência da juventude, enquanto idade exortativa de mártires. “Um herói morto é muito mais prestativo que um soldado vivo”, comenta Frederico, quiçá o mais radical e contraditório dos personagens, interpretado pelo co-roteirista do filme, Francis Vogner dos Reis.
Assumindo-se como “um pequeno fascista” numa autodeclaração temporã, Frederico corresponde ao papel de patrulhador ideológico de seus colegas: é aquele que cobra a entrega revolucionária de seus companheiros, sempre suspeitando (com razão) que um deles seja um traidor. Nas narrações entrecruzadas que abrem o filme, a noção de revolução é oposta ao senso de reação. Ou seja, não é compreendida como um mero ímpeto revoltoso, mas como uma construção discursiva prolongada, que desemboca em atividades transformadoras. Em essência, Frederico é um anarquista, tanto que carrega com imponência a simbólica bandeira negra desse movimento. Porém, ela incendeia-se e desfaz-se durante o trajeto, como quase tudo neste filme noturno e exaustivo…
O ritmo excessivamente lento tem a ver com o título: o caráter insone dos revolucionários clandestinos visa ao contraste com uma nação que dorme e permite que pessoas mal-intencionadas usurpem as principais posições de poder. Segundo outra definição importante do filme, “política é o lugar que existe entre a lei e a guerra”. E o que vemos é exatamente a guerra, que ceifa a maior parte de seus combatentes em plena juventude, de modo que é estranho quando um idoso aparece olhando para a tela num momento de ruptura cronológica: é a deixa para que uma das personagens relembre um momento traumático, no qual pessoas despiam-se ao som da música schubertiana, antes de serem executadas. Se isso te faz pensar em “Alphaville” (1965, de Jean-Luc Godard), não é casual: há uma seqüência diretamente emulada nesta rememoração!
Se formos comparar “Os Sonâmbulos” com outros filmes brasileiros, perceberemos uma conexão direta com aquilo que o teórico Fernão Ramos considerou como “a segunda trindade do Cinema Novo”, o que corresponde a um grupo de filmes que “possuem como temática o dilema do jovem de classe média face a um contexto ideológico que se esvai em 1964”. Dadas as devidas distinções históricas, houve algo semelhante em 2018, ano em que o filme foi lançado, quando ocorreu a eleição que consagrou Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. A derrota aconteceu, em âmbito nacional: a angústia é inevitável!
Nesse sentido, os dilemas de dois outros personagens chamam a atenção: o casal formado por L. (Clara Choveaux) e Ruiz (Rômulo Braga). Ambos sentem forte atração sexual um pelo outro, mas não conseguem consumar o ato erótico. Dependem de artifícios que simulam o sadismo de uma tortura para excitarem-se, mas o afeto não é consumado: o fracasso político é reflexo do fracasso sexual, e/ou vice-versa. Tal qual ouvimos através de uma das instâncias vocais da narrativa, os personagens do filme “eram um grupo de demolidores de mundo. […] Amavam a vida humana, mas desprezavam a própria vida”. Há algo ostensivamente falho nesta equação, não é?
Se, desde o início, sabe-se que Ruiz está fadado ao suicídio, L. possui uma trajetória mais complexa, difusa, em contraponto aos paradoxos definidos (e enfrentados, na pura vivência) por Frederico. Se este último faz com que seja intuído que “a violência justificada pela utopia é a melhor definição de terror”, à personagem de Clara Choveaux cabe o desafio de “ouvir o coração bater e seguir em frente”. O desfecho do filme, ao som da canção de Bertolt Brecht [1898-1956], “Alabama Song”, tem tudo a ver com o Brasil contemporâneo: “pois se não encontrarmos o próximo bar de uísque/ Eu te digo que devemos morrer”… Antes do martírio, alguma diversão: afetividade!
Em seu texto sobre o filme, o crítico Marcelo Ikeda, num livro essencial sobre o cinema brasileiro hodierno, conclui que esta obra “é um retrato poético do marasmo de nossos tempos, e sua contribuição para o panorama do cinema brasileiro se revela pela forma inventiva como reflete sobre as relações entre política e estética, fugindo das tendências totalizantes e das sínteses didáticas”. Nos minutos finais de “Os Sonâmbulos”, o verbo mais pronunciado é vigiar. As referências cinematográficas, discursivas e noticiosas do filme indicam ao espectador uma maneira de posicionar-se frente aos dilemas anunciados, decorrentes do sentimento nacional de derrota. Estamos acordados neste exato momento!?
Wesley Pereira de Castro.