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“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”: o que influenciadores digitais podem aprender com o tio Ben?

“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”: o que influenciadores digitais podem aprender com o tio Ben?

História em quadrinhos também é cultura. Pelo menos para mim. Faz parte da minha infância e adolescência, da minha formação intelectual (por que não?) e do meu corpo, porque até tatuagem baseada em HQ eu tenho. Uma história fundadora do Homem-Aranha enquanto personagem envolve Benjamin Parker, tio de Peter Parker, o “tio Ben”. Peter Parker ainda estava começando a explorar seus poderes recém-adquiridos por conta de uma picada de uma aranha radioativa quando viu um ladrão sendo perseguido por um guarda de segurança. Mesmo podendo pegar o ladrão, Peter nada faz, por entender que, apesar de seus poderes, lutar contra o crime não era seu papel. O ladrão acaba fugindo.

Pouco depois, tio Ben é morto por um ladrão. Peter agora resolve usar seus poderes para capturar o assassino de seu tio. É ai que ele descobre, para seu próprio horror, que seu tio foi morto justamente pelo mesmo ladrão que havia deixado escapar. Tomado pelo sentimento de culpa, ele decide que dali em diante lutaria, sim, contra o crime, movido pelo lema que aprendeu com seu tio: “Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”. É aí que nasce o Homem-Aranha enquanto super-herói.

Mas o que youtubers, podcasters e influenciadores digitais em geral têm a aprender com o tio Ben? Sem dúvida, muita coisa. Nas últimas décadas as mídias digitais cresceram bastante e democratizaram o espaço no debate público. Muita gente que estava limitada a ser receptora no contexto das chamadas “mídias tradicionais” (rádio, TV, jornal impresso…) foi alçada, por meio da internet, ao papel de emissora, opinando, influenciando fazendo valer suas posições e, lamentavelmente, também desinformando.

Esse novo cenário apresenta novos problemas. Um deles, muito bem colocado por Bolívar Torres, é uma “crise de expertise” [1], ou seja, muita gente agora pode falar sobre muita coisa, mas nem todas essas pessoas são, de fato, qualificadas para tal fim. Isso abriu espaço para um “achismo” que, aos poucos, parece ter feito grande parte da audiência atual ter dificuldade em diferenciar o que é opinião do que é ciência. Ou, nas palavras do professor Eugênio Bucci, “O senso comum não diferencia mais o que é um juízo de valor e o que é um juízo de fato” [1].

Intrinsecamente relacionado a esse problema, há um outro, que é uma certa incompreensão dos influenciadores digitais a respeito da responsabilidade que eles adquiriram neste novo contexto da comunicação digital. E é aí que entra a frase do tio Ben: “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. A internet deu voz ou ampliou a voz dessas pessoas, mas isso tem um custo – a responsabilidade com o que se diz – ou ao menos deveria ter esse custo!

Para ficarmos em um “case” que tem sido bastante comentado, o Flow Podcast é um bom exemplo dessa esquiva dos influenciadores digitais em relação à responsabilidade enquanto comunicadores. Bruno Aiub, o Monark, foi afastado do Flow após defender que no Brasil deveria existir um partido nazista. Nem de longe acho que Monark seja nazista e acusá-lo disso seria desonestidade intelectual. Trata-se, sim, de um dos mais icônicos exemplos de pessoas que se tornaram comunicadoras para amplas audiências, entretanto, sem nenhum preparo para o debate público. Além de despreparado, de ser orgulhosamente ignorante, Monark e os demais produtores do Flow por diversas vezes levantaram a bandeira da informalidade, do despojamento e do descompromisso para, consciente ou inconscientemente, se esquivarem da responsabilidade e dos impactos dos conteúdos que o podcast veicula. Essas duas características – a ignorância orgulhosa e a negação da responsabilidade – fazem do Flow e de Monark sinais inequívocos dos tempos.

Quanto à ignorância orgulhosa, Lênio Streck escreve um texto divertido, direto e assertivo [2], tomando de empréstimo o termo “fundãocracia”. Usado por Antônio Prata na Folha de São Paulo. Fundãocracia, nas palavras de Streck, seria o cenário atual em que “os perdedores, os burros, os caras do fundão da classe da oitava série acabam se dando bem e se transformam em ‘comunicadores’. Ou políticos.”

Seria Monark um Jô Soares do Mundo Bizarro?

Gostaria de ilustrar o problema fazendo uma comparação entre a comunicação digital atual e o tempo das “mídias tradicionais”. Na minha infância, o entrevistador mais popular do Brasil era Jô Soares, que falava uns seis idiomas (hoje em dia deve estar falando uns dez). Um comunicador bem culto, autor de livros que renderam a ele o título de imortal da Academia Brasileira de Letras (Jô também é membro da Academia Paulista de Letras). Na Rede Globo, o bastão de principal apresentador foi há alguns anos passado por Jô para Pedro Bial, mas aí veio a explosão das mídias digitais e redes sociais.

E então emergiram figuras como o Monark, alçado ao posto de entrevistador mais bombado nos últimos anos. Não um nazista, mas um moleque com um pensamento raso sobre os assuntos que frequentemente se propõe a abordar (direito, filosofia, economia, sociologia, política etc). E o que é pior, por vezes ele demonstra certo orgulho dessa ignorância. Certa vez ele tuitou: “Eu acho que vc aprende muito mais sobre filosofia conversando, pensando, lendo, vendo vídeos, do que indo à faculdade”. Além de não ter parâmetro para fazer tal comparação (porque ele próprio não foi à faculdade), seu comentário é reflexo de um pensamento anti-intelectual e antiacadêmico que tem muito lastro nas mídias digitais. Depois de receber muitas críticas (que bom!), ele tentou remendar: “só deixando claro, ‘conversando, pensando, lendo, vendo vídeos’ sobre filosofia, eu digo”. Ah, sim. Agora sim (só que não).

É bastante exemplificativa a discussão que Monark teve com a advogada Gabriela Prioli, sobre a necessidade de fundamentar as opiniões com dados e evidências [3]. A relutância de Monark em entender isso foi enorme. “É muito chato não poder conversar, falar sobre o que eu penso, porque eu não tenho dados e estatísticas”, disse ele. Pois é, Monark, mas comunicação com o grande público é isso aí. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidade. É preciso ter cuidado com a “opinião” que se emite e buscar ao menos o mínimo de fundamento para ela.

Para continuarmos na comparação entre Monark e Jô Soares, a coisa piora quando pensamos o quanto Monark, embora despreparado, adota com frequência um tom confrontador, menos comum aos programas de entrevista do passado, mas bem comum nas “tretas” de redes sociais. Mais um exemplo do quanto o Flow e Monark são sinais dos tempos. Não que antigos apresentadores, como Jô ou Marília Gabriela, não confrontassem seus entrevistados, mas a confrontação, o duelo retórico, a batalha discursiva (tantas vezes esvaziada de dados, estatísticas e evidências) viraram lugar-comum.

Mas há um problema: se você é um entrevistador e possui um tom conflitivo em relação aos entrevistados, as chances de você se dar mal são grandes, pois normalmente os entrevistados entendem melhor o assunto da entrevista que você (justamente por isso estão sendo entrevistados). Vale tentar buscar um certo equilíbrio.

Nos quadrinhos dos Super-Homem (mais uma vez: história em quadrinhos também é cultura!), o Mundo Bizarro era um mundo com tudo invertido, falhado… bizarro. Aquaman não sabia nadar, e o Flash era “o homem mais lerdo do mundo” [4]. Comparar Monark e Jô Soares pode ser por sí só uma comparação bizarra, mas ao menos ajuda a pensar no debate público e na esfera pública no contexto da história recente das mídias. A conclusão me faz achar que as coisas pioraram.

A negação da responsabilidade

Tanto em relação à discussão com Gabriela Priolli quanto em outros casos, o Flow e Monark defenderam a bandeira da informalidade. A produção nem se posiciona como um programa de entrevistas, mas como um podcast de conversa, bem informal, como um papo de bar. Assistindo a um outro vídeo [5], de um canal do Youtube com quase 1 milhão de inscritos, que repercutiu a discussão entre Prioli e Monark em favor deste e contra Prioli, vê-se o quanto a audiência é capaz de comprar essa ideia de informalidade e descompromisso sem diferenciar que uma coisa é aquilo que um produtor de conteúdo diz de sua produção, ou seja, o modo como ele a apresenta, o modo como ele quer que essa produção seja vista; a outra é aquilo que a produção de fato é e os impactos que ela causa. Essa é uma discussão recorrente nas escolas de comunicação social e/ou em estudos que envolvem ética jornalística, mas que vem se perdendo no meio da profusão de conteúdo do mundo digital. O vídeo, aliás, é uma ode ao achismo, é um show de desprezo aos dados e à objetividade dos fatos, exemplificando o que Bucci disse sobre o senso comum não diferenciar mais o que é um juízo de valor e o que é um juízo de fato e o que Bolivar Torres expõe ser uma crise de expertise.

Quem melhor alertou Monark e a equipe do Flow sobre a responsabilidade de falar com milhões de pessoas, sobre as implicações que isso pode acarretar e sobre o quanto o argumento do despojamento pode ser falacioso, foi o compositor Rogério Skylab [6] [7]. Monark diz: “A gente gostaria que isso aqui fosse uma conversa de botequim. Não podemos ser só dois moleques idiotas?”. O compositor responde: “Você acha que está num botequim? Tem uma multidão vendo lá fora, cara! Querendo ou não, você sendo formado ou não, isso aqui é um programa jornalístico. A forma do programa é de conversa, mas é jornalístico. Tudo que se fala aqui tem uma responsabilidade”.

Se o interesse é levar um papo de botequim, o que não falta é botequim bom por aí. Claro que o interesse na verdade é monetizar, angariar patrocinadores e seguidores, mas ao mesmo tempo balançar a bandeira do despojamento para se isentar de estudar o que se diz e de responder por isso quando for o caso.

Esse é o desafio: convencer os influenciadores digitais, os produtores de conteúdo, os youtubers, os podcasters, a audiência e, no fim das contas, a sociedade em geral, da responsabilidade a respeito da comunicação social nesse mundo digital em que (quase) todos podem falar, ainda que nem todos entendam tão bem do que estão falando. E vale reforçar: história em quadrinhos também é cultura!

Referências:

[1]https://oglobo.globo.com/cultura/caso-monark-especialistas-explicam-por-que-achismo-esta-rivalizando-com-ciencia-o-saber-25390781

[2]https://www.conjur.com.br/2022-fev-17/senso-incomum-jenios-redes-formadores-opiniao-pobre-pais

[3] https://www.youtube.com/watch?v=7oDXXkA3BkI

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Mundo_Bizarro

[5] https://www.youtube.com/watch?v=q6HOjAMfkO8

[6] https://www.youtube.com/watch?v=REAzCtcsa3c

[7] https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/quando-skylab-alertou-monark-sobre-a-irresponsabilidade-de-suas-falas/

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