EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

Assim na Romênia como no Brasil: “quanto mais idiota uma opinião, mais importante ela é”?

Assim na Romênia como no Brasil: “quanto mais idiota uma opinião, mais importante ela é”?

Na manhã do dia 09 de outubro de 2021, a curadora e produtora cultural Renata de Almeida, viúva do renomado crítico Leon Cakoff [1948-2011], realizou uma conferência de imprensa, a fim de apresentar aos jornalistas as novidades do evento cinematográfico mais importante do Brasil, organizado por ela: a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, cuja quadragésima quinta edição ocorre entre os dias 21 de outubro e 03 de novembro. Na ocasião, ela anunciou os títulos de alguns filmes que serão exibidos na programação deste ano, e emocionou-se bastante ao refletir sobre o modo como parte considerável da sociedade brasileira ataca os profissionais da imprensa e da cultura no (des)governo atual…

Iniciando o seu pronunciamento com uma fala tão ensaiada quanto incisiva [“foi um ano muito difícil, mas a seleção está muito forte!”], Renata de Almeida elogiou de maneira contundente o Jornalismo, no sentido de que, tal qual o Cinema, trabalha com a mesma matéria-prima, a realidade. E complementou: “como o cinema tem mais tempo que o jornalismo, ele transforma a realidade em histórias”. Foi uma das deixas para apresentar um filme que serviu como aperitivo para o excelente cardápio do que será exibido na Mostra desse ano, a produção romena “Má Sorte ou Pornô Amador” (2021, de Radu Jude), vencedora do Urso de Ouro no Festival de Berlim.

Dividido em segmentos bastante específicos, este filme possui também um prólogo deliciosamente pornográfico e um epílogo que contém três possibilidades satíricas de desfecho. Na abertura, a protagonista Emilia (Katia Pascariu) transa com o seu marido ao som da canção teutônica “Lili Marlene”. Além de praticar sexo oral, ela pronuncia várias palavras de baixo calão, a fim de manter o seu parceiro excitado, o que é dificultado pelas interrupções familiares, do lado de fora do quarto. Logo saberemos que este vídeo caseiro foi publicado no sítio eletrônico PornHub, o que gerou algumas complicações para a personagem, visto que ela é professora escolar de História.

No primeiro segmento do filme, “Via de Mão Única”, acompanhamos a personagem perambulando pelas ruas de Bucareste, no afã por tentar dirimir o impacto negativo desta situação: os pais dos alunos ficaram sabendo da existência do vídeo e exigiram uma reunião, onde será discutida a possibilidade de expulsão da professora. Ocorre que o filme foi realizado em plena pandemia da Covid-19, na Europa, de maneira que este talvez seja o primeiro grande filme ocidental a utilizar o uso de máscaras faciais como subtema tramático: a câmera do diretor perscruta os ambientes urbanos, a fim de demonstrar o quão irritadiças estão as pessoas – e até mesmo os gatos – na conjuntura ideológica atual. Por onde quer que Emilia passe, ela testemunha brigas, discussões e ofensas. O que acontece na tela tem muito a ver com o Brasil, antecipou Renata, na conferência de apresentação.

O segundo segmento, um “Breve Dicionário de Anedotas”, rompe a estrutura narrativa até então em desenvolvimento e cumpre o que é prometido em seu subtítulo: apresenta-nos a uma série de verbetes contestatórios, em que palavras-chave do conservadorismo são ressignificadas de maneira tão cínica quanto subversiva. Exemplo: numa das definições, é alegado que a palavra “boquete” é a mais pesquisada nos dicionários eletrônicos internacionais, sendo a segunda “empatia”. Noutro momento, crianças são definidas como “prisioneiros políticos de seus pais”. As situações religiosas são associadas a covardia, preconceito racial ou beligerância e, como a Romênia esteve sob muito tempo sob o jugo de uma violenta ditadura comunista, os ataques etimológicos são radicais. Quem está acostumado ao estilo do diretor, sabe que ele é extremamente crítico acerca das contradições políticas e históricas de seu país!

No segmento derradeiro, “Práxis e Insinuações (Comédia)”, voltamos a acompanhar Emilia, agora sendo julgada pela diretora do colégio e pelos pais dos alunos, numa seqüência de diálogos burlescos que alcança o humor por causa de sua absurda verossimilhança, não obstante serem aterrorizantes, sobretudo por diagnosticarem a verve repressiva da extrema-direita, atualmente em voga no mundo. Como o diretor evita qualquer tipo de condescendência, faz com que até mesmo algumas afirmações sóbrias destes personagens sejam contrabalançadas por aspectos ridículos, no afã por despejar o ‘grand finale’ tríptico, que antecipa o arguto uso de uma canção em inglês, nos créditos finais, cuja letra cita alguns aforismos do filósofo Ludwig Wittgenstein [1889-1951]. Mais irônico que isso, impossível: confiram o filme!

Retomando a expressiva fala de Renata de Almeida, quando foi-lhe perguntado se ela cria que, no Brasil, há o perigo de instalar-se uma ditadura evangélica, ela fez questão de frisar de não considera a religião um problema em si, ainda que não hesite em professar: “a minha religião é o cinema”. Antes disso, ela convidou alguns patrocinadores do evento – que obedece a um formato híbrido, havendo tanto sessões presenciais quanto filmes disponibilizados em serviços de ‘streaming’, que “não são competidores, mas parceiros” – e comemorou a possibilidade de retorno às salas de cinema, onde podemos “esquecer um pouco as dores do parto”.

Numa das crônicas de viagem [“Almas Mortas”] contidas em seu livro “Ainda Temos Tempo”, publicado em 2006, o idealizador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Leon Cakoff, escreve: “para viajantes prudentes, sempre há espaço ou tempo de observação e atenta tolerância para o universo de almas penadas, de gente prisioneira de corpos e espaços de sofrida continência. Às pessoas que não se tocam pelos simples rumos da locomoção dos movimentos no espaço que lhes confinam vidas inteiras”. Isso tem tanto a ver com os ensinamentos obtidos do extraordinário filme romeno exortado nestas linhas quanto com a missão abnegada de Renata de Almeida, ao levar à frente um evento tão importante como este, que instaura momentos poderosos de respiro artístico em meio à asfixia institucional em vigor no Brasil contemporâneo. E, assim, refazemo-nos!

Wesley Pereira de Castro.

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]