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As miragens neocoloniais brasileiras na relação com a CPLP

As miragens neocoloniais brasileiras na relação com a CPLP

Nos últimos textos de nossa coluna constatamos que os registros sobre a CPLP em 20 anos nos dois maiores jornais impressos brasileiros, Folha de S. Paulo e O Globo, são tão raros que afirmamos a inexistência da comunidade lusófona no Brasil. Agora, avançaremos na investigação para buscar o porquê dessa opção brasileira em silenciar, ocultar e apagar as profundas relações histórico-identitárias com a comunidade dos países de língua portuguesa.

Sugiro que as respostas para a invisibilização da comunidade lusófona no Brasil estão nos rastros dos textos, das imagens, dos registros deixados nessas duas décadas pela Folha de S.Paulo e O Globo. Diante dos restos das notícias sobre a CPLP nesses dois jornais utilizamos como método buscar enxergar esses rastros, como diz Ginzburg (2007), porque eles emergem e são sinais dessas torções que produziram a invisibilização da lusofonia no Brasil.

Comecemos com um caso exemplar: quando a CPLP foi criada, o presidente do Brasil era Fernando Henrique Cardoso (FHC). Antes de 17 de julho de 1996, algumas ações/reuniões tinham sido realizadas para preparar a institucionalização da entidade. A Folha de S.Paulo não viu isso e só noticiou a CPLP quando o presidente FHC vai a Lisboa para participar do ato de fundação. No dia 16 daquele mês, um dia antes, O Globo e a Folha publicam uma entrevista de FHC ao Diário de Notícias, de Lisboa. O título dela foi: “FH: brasileiro pensa como caipira”.

O presidente brasileiro afirma que o brasileiro “pensa como caipira”, é “isolacionista” e “rejeita a globalização”. Ele diz que morou muitos anos fora do Brasil e que os brasileiros são caipiras porque “desconhecem o outro lado, e quando conhecem, encantam-se” (O Globo, 16/07/1996, p. 3). Para explicar o ser “caipira” do brasileiro, o presidente recorre à matriz racial/identitária: é “sem dúvida nenhuma, a variante da mentalidade criolla”, diz o presidente e sociólogo. Perceba, FHC encontra na “variante da mentalidade criolla” a responsável pelo atraso civilizacional.

A entrevista foi concedida nas vésperas da criação da CPLP, entidade com maioria de países africanos, com povos que falam o português e outras línguas, inclusive o crioulo. Seria esse o cartão de visita do Brasil na nova organização internacional: a necessidade de rejeição e do apagamento da “mentalidade criolla”? Apagar ela do brasileiro ou do Outro diante de nós? Estaria aí o indicativo de como deveríamos lidar com uma comunidade majoritariamente crioula?

De saída, a fala do presidente brasileiro conecta dois movimentos internos: 1) o incômodo do representante da elite brasileira diante do ser “caipira”, de “mentalidade criolla”, atrasado pois rejeita a globalização, e 2) a exigência de mudança dessa condição, afinal quem fala é o presidente branco, intelectual e que morou na Europa. Agora, com ele, o Brasil deveria caminhar para o moderno, abrir-se ao mundo, buscar se inserir no cenário mundial, “encantar-se”, mas, para isso, era preciso apagar a “mentalidade criolla”.

O presidente da República é uma fonte jornalística primária e, nesse caso, é o líder do maior país lusófono, em que grande parte do povo é constituída por crioulos. Na fala de FHC, há um forte componente racial. Fica claro que seu discurso remete a um projeto de nação advindo do Brasil Colônia e formulado pela elite nacional. Esse projeto foi materializado, por exemplo, em obras como “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” (1881) e a “História da literatura brasileira” (1888), do intelectual sergipano Silvio Romero. Nelas, o brasileiro é resultado de “uma sub-raça mestiça e crioula, nascida da fusão de duas raças inferiores, índio e negro, e de uma superior, a branca ou ariana” (Chauí, 2013, p. 43).

A intelligentsia nacional, que é eurocêntrica, desenvolveu a ideia de que o Brasil precisava acertar os passos com a Modernidade, no dizer de Canclini (1997), isto é, alinhar-se às potências capitalistas, e isso ocorre de forma simultânea com o apagamento de tudo que revele em nós os traços do “passado atrasado”, conformado no índio, negro, caipira, crioulo. Não foi por outro motivo que Renan (2006) sustentou que o “esquecimento” é um fator essencial na construção das nações. A fala do presidente do Brasil, em 1996, estava ajustada às lógicas da herança colonial, do eurocentrismo e da globalização.

Esse registro revela a presença incômoda do Outro, negro e crioulo entre nós e que impede, segundo FHC, que alcancemos o “outro lado”, o mundo global e “encantado”. Para além do Outro interno, de mentalidade criolla, o Brasil está diante de um Outro-Comunidade, que também tem uma configuração majoritária crioula. Ou seja, tem-se, assim, as potências como o Outro “encantado”, desejado e imitado, em oposição ao Outro “rejeitado”, negro, pobre, crioulo – interno e externo – a ser apagado. Esse é um forte indicativo para a invisibilização da comunidade lusófona no Brasil.

Na prática, o que se verificou no decorrer dos anos seguintes em O Globo e na Folha de S.Paulo depois da criação da CPLP foi exatamente uma política de combate à comunidade lusófona por parte do Brasil, que vai desde o não reconhecimento expresso em silenciamentos reiterados, até na criminalização dos contatos do Governo Lula, por exemplo, com a África lusófona, o que veremos mais na frente.

A entrevista de FHC foi publicada na página 3 em O Globo, e na 5 na Folha, nos primeiros cadernos e na editoria da política nacional, espaços em que os jornais se dedicam a temas mais importantes. Entretanto, as informações sobre a criação propriamente dita sobre a CPLP ganharam um pequeno quadro/box ao lado da entrevista, com o título “Sete países unidos pelo mesmo idioma” (O Globo, 16/07/1996, p. 3). Diferentemente da Folha, em O Globo os nomes dos países da CPLP foram ditos, mas sem qualquer indicação histórica que permitiria associá-los a uma comunidade, e a nós a eles.

Na Folha do dia 18 de julho de 1996, encontra-se a notícia da oficialização da CPLP. Nela, o jornal informa que o presidente FHC destina U$S 4 milhões a “programas de cooperação com países africanos de língua portuguesa”. Essa ação, porém, não se confirmou ao longo dos anos. Nessa notícia, o preço das “doação” estava estampado no jornal: “Em contrapartida, o Brasil ganhou o endosso formal dos seus seis sócios na CPLP para sua candidatura a uma vaga no Conselho de Segurança da ONU” (Folha, 18/07/1996, Brasil, p. 5).

Outro recorte significante desse início é o que trata da viagem de FHC até Moçambique em 2000, onde ele participou da conferência da CPLP. A notícia está na Folha de S.Paulo de 18 de julho daquele ano e confirma os modos de compreensão de como o Brasil deveria tratar essa comunidade. O jornal destaca que o presidente Fernando Henrique “perdoou 95% da dívida” de Moçambique e enfatiza, com o uso de verbos de força, as ações de FHC como um agente superior e apartado dos demais “países pobres da comunidade”. Fernando Henrique, narra o jornal, “incorporou o papel de líder do bloco” e “anunciou o repasse”. “De uma vez só”, FHC “mandou recados para dissidentes políticos de Angola, cobrou união do grupo para enfrentar os efeitos da globalização, estabeleceu prioridades para o desenvolvimento comum, distribuiu verbas para treinamento de pessoal e disponibilizou tecnologia” (Folha, 18/07/2000, p. 7).

Essas ações de força da FHC lembram os “Códigos de Postura” e as violentas reformas sanitárias e urbanas dos séculos XVIII e XIX, aplicados pela elite brasileira para o controle, punição, apagamento e invisibilização da raça negra e dos pobres (Schwarcz, 2012). Nessa notícia da Folha, a condição do Brasil como principal ator do CPLP, aquele que manda, cobra, estabelece, distribui, é reforçada pela informação de que o discurso de FHC “foi voltado principalmente para os ‘primos pobres’ africanos”. O jornal até revela o parentesco entre brasileiros e africanos, mas para marcá-los como a diferença, os Outros, os “primos pobres” em oposição a nós, os “ricos”.

Para reforçar essa condição de superioridade, já destacada nos verbos de força do presidente brasileiro e a existência do Outro, a Folha ressalta que a comitiva de Fernando Henrique era a maior da CPLP, que se deslocava com 15 carros pela capital de Moçambique. A notícia arremata informando que “os seguranças brasileiros são os mais ostensivos, mantendo FHC isolado todo o tempo dos jornalistas”, ou seja, imune, um rei que vai a colônia inspecionar seus subordinados.

O Globo também esteve em Moçambique para acompanhar o presidente FHC. Na edição de 18 de julho de 2000, o jornal trouxe um relato semelhante ao da Folha, destacando o perdão da dívida e as ações de “comando” do presidente brasileiro. Na fotografia aparece FHC recebendo um xale de Xanana Gusmão, líder do Timor-Leste, como se fosse uma coroação ao líder dos países da CPLP. Na prática, o ativista timorense tentava arrancar do brasileiro um aceno de apoio à luta pela independência, apoio que não aconteceu. O Brasil mantinha acordos comerciais com a Indonésia, que tinha invadido o Timor, e foi o último país da CPLP a se manifestar em favor do Timor-Leste.

Os textos da Folha e de O Globo revelam uma postura de uma miragem neocolonial brasileira em relação aos países africanos lusófono e de indiferença ao Timor-Leste. Com Portugal, uma aliança fria, mas de algum encantamento. Essas ações do presidente FHC, às quais os jornais empregam força narrativa, fazem-nos lembrar das considerações de Said (2011) sobre as expansões imperialistas dos séculos XV e XVI, onde se constrói uma relação de naturalidade entre os povos superiores e inferiores. Aqui, temos uma potente formação ideológica que fabrica o soberano com a missão divina de agir, mandar, cobrar, estabelecer, governar os inferiores que, por sua vez, reconheciam-se como subordinados (Said, 2011).

Ressaltamos ainda dois aspectos nas notícias na relação entre o presidente Fernando Henrique e a CPLP. O primeiro é o das fotografias. Em O Globo e na Folha são poucas as notícias em que existem imagens de FHC associadas à comunidade lusófona. Quando ele aparece, a foto o mostra como intelectual, líder que circula “encantado” por Lisboa, o comandante dos países pobres. Há apenas uma fotografia na Folha de S.Paulo, edição de 18 de julho de 1996, em que  personagens negras, os presidentes dos países lusófonos da África estão próximos de FHC: é a foto de criação da CPLP. No centro, estão o presidente e o primeiro-ministro de Portugal, Jorge Sampaio e António Guterres, respectivamente. FHC, apesar de se localizar mais para a ponta da cena, busca conversar com o presidente português, único sinal de diálogo na imagem.

Talvez isso revele um pouco do interesse do Brasil na CPLP, pelo menos naquela ocasião. Diante de Portugal e Brasil, os demais presidentes das nações lusófonas africanas são como figuras visível e invisível. São visíveis como forma de ostentação dos líderes, parecem soldados uniformizados e prontos a apoiar as ações dos comandantes, a exemplo de votar no Brasil para o Conselho de Segurança da ONU. Todavia, os africanos são invisíveis quando reivindicam o direito do reconhecimento identitário e uma comunidade sem fronteiras.

Outro aspecto a destacar e que está alinhado às reflexões anteriores é que, em grande parte das notícias sobre a CPLP em que o presidente Fernando Henrique foi a personagem principal, as retrancas/marcas/selos utilizadas pelos dois jornais foram sempre: Viagem, Diplomacia, Portugal, Governo. Não há indicações ou associações identitárias e comunitárias. Essas retrancas foram alteradas no Governo Lula.

Nesse sentido, na próxima semana, vamos lidar com algumas notícias sobre essa comunidade, desde vez quando o presidente do Brasil era Lula da Silva. Assim, continuaremos a passear por entre essas raras notícia sobre a CPLP em 20 anos nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo para perceber o porquê da comunidade lusófona ser invisível no Brasil.

Referências
Canclini, N. (1997). Culturas híbridas. São Paulo: Edusp.
Chauí, M. (2013). Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. S. Paulo: Perseu Abramo.
Ginzburg, C. (2007). O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras.
Renan, E. (2006). O que é uma nação? 1882. Revista Aulas: Unicamp, 21p. Disponível em http://www.unicamp.br/~aulas/VOLUME01/ernest.pdf. Acessado em 11 fev. 2014.
Said, E.W. (2011). Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras.
Schwarcz, L. (2012). Marcas do período; População e sociedade. In: SCHWARCZ, Lilia (coord.). A abertura para o mundo 1889-1930. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, p. 19-83.

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