Se permanecesse vivo até o dia 03 de dezembro de 2022, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard [1930-2022] completaria noventa e dois anos de idade. Entretanto, ele não quis esperar: alegou sentir-se cansado e optou pelo suicídio assistido, que é uma prática legal na Suíça. Com a sua morte, portanto, fecha-se um extenso ciclo de realizações iniciado com a Nouvelle Vague, movimento do qual ele foi co-fundador e um dos principais e mais prolíficos expoentes. Sua obra o eterniza, entretanto. Apenas o corpo físico se vai…
Jean-Luc Godard optou por extrair-se de vida na mesma quinzena em que dois idosos célebres faleceram, por causas naturais: a rainha britânica Elizabeth II [1926-2022], em 08 de setembro, aos noventa e seis anos de idade; e o cineasta igualmente suíço Alain Tanner [1929-2022], no dia 11 do mesmo mês, aos noventa e dois anos de idade. Ficam os vivos, resta a História!
Se não chega a ser algo de todo inesperado o anúncio da morte de alguém com idade tão avançada, a opção pela extirpação da própria vida o é, de modo que ficamos a elucubrar quais teriam sido as efetivas razões que conduziram o artista ao suicídio. Ao lermos adequadamente os signos espalhados através de seus filmes – muitos deles, obras-primas –, perceberemos que o anúncio estava lá: a morte era uma temática recorrente, mas não necessariamente vista como algo negativo, atrelado ao luto. A morte é um fato singular e historicamente demarcado, enquanto os atos das pessoas perduram imemorialmente, desde que tenha-se sabido cumprir os “deveres autorais” associados à pela trajetória humana, para utilizar uma expressão cara ao cineasta.
Advindo de uma família privilegiada de banqueiros, Jean-Luc Godard rejeitou o conforto que o esperava enquanto herdeiro e continuador fiduciário. Ao invés disso, ele preferiu ser crítico e diretor de cinema, realizando obras arrojadas e reflexivas, inventando uma nova linguagem, revolucionária em sentido e forma, já que estes elementos não se separam. Tanto que a sua filmografia atravessa diversas fases, discursiva e intencionalmente coerentes entre si, incluindo uma culminância marxista-maoísta, em que a própria noção de autoria é contestada, e o diretor preferia assinar com um pseudônimo grupal, o Dziga Vertov (em homenagem a um inventivo cineasta soviético). O sobrenome Godard rima com revolução, portanto.
A despeito de sua idade mui avançada, o realizador continuava ativo, realizando obras que enchiam os críticos de deleite, ainda que fosse requerida uma carga considerável de erudição literária para compreender as suas referências. Nalgum sentido, o diretor permaneceu anacrônico, malgrado saber reinventar-se muito bem, a ponto de ser regularmente considerado “à frente de seu tempo”. Chegou até a encetar um filme com um uso subversivo das técnicas de terceira dimensão e, recentemente, compartilhou uma ‘live’ via telefone celular. Trata-se de um cineasta inequivocamente vanguardista, portanto. Verbo no presente.
No afã por escolher algum de seus variegados trabalhos, à guisa de emocionada homenagem, optamos por um curta-metragem discreto, com apenas sete minutos de duração, no qual ele cantarola, em pé, alguns versos rimados que ele próprio compusera: filmado como uma espécie de carta para os diretores do Teatro Nacional de Estrasburgo, onde tentara se empregar como colaborador, sem sucesso, Jean-Luc Godard compartilha a sua tristeza com os espectadores, admitindo que não sente mágoa, malgrado as evidentes manifestações de pesar. Falamos sobre “Adieu au TNS” (1998), que serve como metonímia perfeita para a sua despedida.
É um dos filmes mais simples do realizador: poucos cortes, que convergem na mesma cena, onde encontramos o diretor, em postura ereta e com a voz embargada, cantando em voz lenta o texto que reproduzimos abaixo, em tradução assaz livre:
“Boa noite, senhoras e senhores.
O que se segue é apenas uma despedida terna de um refugiado sem-teto, que, no palco, pensou em encontrar um refúgio gentil.
Oh, vocês, jovens mestres e senhoras, aceitem sem raiva a reclamação de um viajante que seguiu uma princesa em um teatro – céus, que infortúnio!
O idiota pensou, em seu susto, que alguma liberdade restasse em nossa mal-amada Europa, através das promessas faladas que fluem do corpo do ator. Quantas cartas? Quantas imagens? Quantos livros, todos bem escritos, foram enviados apesar da tempestade? Mas ele recebeu, em recompensa, apenas ausência, silêncio e indiferença de vocês, que, todas as noites, sob os seus travesseiros, encontram Claudel, Artaud, Molière Antígona e Lorenzaccio…
Às vezes, penso no outro idiota que trabalhou para alinhar três palavras. Não sei por que, gentis camaradas, devo suplicar tanto! Jovens e belos amigos, por que eu vos devo implorar para não deixar que o navio encalhe? É possível um outro lugar em que um belo batalhão se formaria para atravessar montanhas, e para procurar as palavras do outro, sem obrigá-lo a dizer seu nome?
Romeu jogou cadeiras e Julieta que empinou a sua bunda. Pobre William, tu estás sendo espancado, num mundo tão pouco à vontade: a AIDS ainda encontra-se invicta!
A fala flui da boca. Podes beijá-lo, minha querida, antes de voar para longe de seu toque e declamar loucamente que a vida privada tem força de lei? Tu que sacrifica teu corpo e rouba a alma do personagem, levante-se, mais uma vez, sem considerar os ajustes, andando ao lado das exceções…
Esta era é um pouco irracional: acreditam que, neste lugar mágico, um dia, a alma humana pôde perscrutar o segredo científico?
Porque suas mãos estão nas minhas?
Adeus, TNS e Estrasburgo.
O exilado dá assim o seu passo. Mas, se o público estiver errado, ao saudarem, não proncunciam um ‘olá’ muito carinhoso para ti, minha querida?
Adeus meus amigos”.
É um texto sobremaneira direcionado e com uma intenção muito específica, mas que pode ser interpretado como uma declaração estendida de princípios e como um convite temporão para que as novas gerações o descubram, não obstante o impacto de suas obras ser hodiernamente rejeitado por boa parte dos estudantes, visto que pode-se reclamar de uma ambígua objetificação em relação ao corpo das mulheres. Afinal, ele criticava ostensivamente a prostituição feminina, mas fica evidente que ele a enxergava de maneira romantizada e “útil”, o que causa incômodo compreensível entre as feministas. Nenhum gênio é unânime, eis o que os torna contestadores mais que necessários. Permitamos agora a reiteração paranoticiosa de uma tautologia: há muito a ser visto, revisto e ainda descoberto na filmografia godardiana. Na mais entusiasta das acepções, quando assistimos a alguma de suas obras, percebemo-nos diante de um imortal!