No mês de julho de 2020, passaram a circular, nas mídias sociais, manchetes precipitadas alegando que a Organização Mundial da Saúde (OMS) teria removido a maconha da categoria de drogas. Após uma verificação criteriosa, foi descoberto que, na verdade, o que ocorreu foi uma recomendação avaliativa, de modo que um parecer oficial acerca da possibilidade de supressão será divulgado apenas em dezembro do mesmo ano. Até que isso ocorra, convém aguardar…
O interesse célere na remoção supracitada não tem a ver com o mero entusiasmo de usuários da ‘Cannabis sativa’ acerca de seu consumo público, mas chama a atenção para um debate longevo (e urgente), visto que as pautas políticas relacionadas às substâncias consideradas tóxicas são enfatizadas em seus aspectos policiais, quando, em verdade, deveria estar sob o jugo dos órgãos de saúde.
Agravando a situação, as práticas repressivas envolvendo o tráfico das substâncias entorpecentes e analépticas são balizadas pela institucionalização tácita do racismo: quando um branco é preso por suspeitas de envolvimento com a venda de drogas, a profissão que exerce é mencionada nos prontuários policiais, ao passo que, quando é um negro que é aprisionado, antes mesmo que se tenha qualquer prova de sua culpabilidade, o rótulo é largamente difundido: “traficante”!
Além deste aspecto, são generalizados os preconceitos – em sua maior parte, revestidos de uma previsível hipocrisia – envolvendo a naturalização do consumo de alguns “expansores do músculo cerebral”, como refere-se o músico Arnaldo Baptista ao que é definido por outrem como “drogas”. Há muito tempo que a maconha deixou de estar associada à criminalidade. Hoje em dia, é um complemento quase corriqueiro das diversões juvenis e/ou das tendências artísticas mais gerais. Outras substâncias, entretanto, mais drásticas em seus efeitos colaterais, requerem ponderação na exortação do consumo: quem já testemunhou a destruição familiar desencadeada pelo vício em cocaína, por exemplo, que manifeste-se em contrário.
É nessa perspectiva que o longa-metragem sul-africano “Barry Fritado” (2020, de Ryan Kruger) é tão necessário: exibido com muito alarde crítico na décima sexta edição do Fantaspoa – Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, que, em 2020, foi completamente virtual – este filme oferece-nos uma incursão deveras inusitada na temática toxicômana, assemelhando-se, em lógica discursiva geral, ao conto “O Alienista” (1882), do celebrado escritor brasileiro Machado de Assis [1839-1908], em que, no afã por internar todas as pessoas da cidade em que vive, um médico descobre que o verdadeiro louco era ele. É mais ou menos o que ocorre na relação espectatorial que estabelecemos com este alucinado filme…
Aproveitando-se magistralmente do exotismo fisionômico do ator Gary Green (que encarna o personagem-título pela segunda vez, já que esta é a versão estendida de um curta-metragem homônimo), “Barry Fritado” acompanha a trajetória errática de um viciado em heroína por um contexto urbano que o condena, mas que, em termos estruturais, é o responsável direto por sua existência socialmente patológica. Antes de sujeitar-se à dose excessiva do alucinógeno que desencadeará todo o frenesi despejado no filme, Barry comenta com um companheiro de toxicomania que “os viciados em drogas são os mais indicados para tornarem-se enfermeiros, pois sabem encontrar uma veia como ninguém”. É um chiste, mas também a demonstração de que há uma racionalidade canhestra em meio à completa subsunção no surto eufórico.
Depois que injeta uma dose considerável de heroína em seu sistema nervoso, Barry sai entorpecido pelas ruas, onde é abduzido por uma nave alienígena, que realiza diversos experimentos com seu corpo e altera as suas configurações penianas. De volta à Terra, Barry parece zumbificado – em termos comportamentais – e, a despeito de sua aparência exageradamente esquálida e desgrenhada, desperta o interesse sexual de homens e mulheres. Transa sucessivamente com um punhado de pessoas – sob o efeito de inúmeros comprimidos de ‘ecstasy’, que ingere acidentalmente numa danceteria – e, num dos casos, expele uma estranha gosma preta que, ao penetrar no sistema reprodutivo de uma prostituta, causa-lhe uma gestação espontânea, de modo que ela dá a luz a um bebê cinco minutos após a ejaculação dele. E estamos ainda no começo do filme!
Daí por diante, as situações mais esdrúxulas ocorrerão com Barry (e ao redor dele): balbuciando apenas algumas palavras – geralmente repetindo o que lhe dizem – ele é resgatado por sua abnegada esposa, que fica excitada ao flagrá-lo alimentando o filho que possuem em comum. Ao padecer de uma febre intensificada, ela decide conduzi-lo até um hospital, mas Barry foge, e é respectivamente “acolhido” por uma dupla de sintetizadores químicos, um mendigo pedófilo e seqüestrador, um deficiente mental que pretende fugir do sanatório, e outras pessoas marginalizadas. Efeitos visuais esplendorosos permitem ao espectador o sucedâneo das sensações experimentadas pelo protagonista: o filme torna-se, ele também, uma “droga”, portanto!
Nos noventa e nove minutos de duração do filme, não há “moral da estória” explícita ou qualquer doutrinação esquerdista evidente, mas, nas entrelinhas, é possível identificar contra quais posicionamentos o filme é refratário. Por ser filmado numa metrópole da África do Sul, é óbvio que o racismo é questionado (num diálogo tão rápido como certeiro em sua aparente nulidade factual), mas a verve ideológica sub-reptícia do roteiro traz à tona aquilo que deveria ser obrigação das instituições públicas: o acolhimento. Para quem lida sazonalmente com o drama de possuir em sua vizinhança ou ambiente doméstico alguém que sofre com o vício em substâncias tóxicas, este filme externamente cômico é consolador e balsâmico. Além de muito divertido também. Uma das grandes surpresas cinematográficas (e psicodélicas) do ano!