Depois de tomar conhecimento da justa indignação de muitos em Portugal com a entrevista, em uma grande emissora de TV, de um sujeito de extrema-direita, nazi-fascista e que já foi condenado por vários crimes, percebi um saudável debate sobre liberdade de expressão e que precisa, é claro, ser aprofundado.
Sobre a entrevista, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) informa que vai analisar as queixas dos telespectadores. Faz muito bem. A TV, por sua vez, justificou a entrevista como liberdade de expressão, assegurada na lei. A questão é que esse fato não pode mesmo ser deixado de lado, esquecido, apagado.
Até que ponto dar voz e vez ao ódio, ao preconceito, racismo, intolerância, violência, festejar sanguinárias ditaduras e seus ditadores se ampara na liberdade de expressão? A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Se assim fosse, seria totalitária, sendo o inverso da própria liberdade.
Bem que a tragédia brasileira em vigor, a República da Mediocridade e do Ódio, deveria ser objecto de atenção em Portugal, porque foi exactamente a comunicação social, a mais tradicional, quem contribuiu na formulação, ascensão e posse da extrema-direita e suas práticas anti-humanistas.
O debate em torno da entrevista na TV em Portugal me levou a um longo artigo que escrevi em 2015 (Revista Communicare, v. 15, nº 01) e que apresento aqui apenas um ponto. De saída, deixo clara minha posição: a “liberdade de expressão” guarda uma radical diferença da chamada “opinião expressada”. Mais objectivo: nenhuma manifestação de ódio não se abriga na liberdade de expressão.
Ao discutir liberdade de expressão não jogo luzes nos eventos históricos que produziram as famosas declarações internacionais, nem as formulações no campo do Direito. Nossa reflexão busca ir além de leis, regulamentos, decretos, códigos, pensando a liberdade como experiência relacional humana, que existe no exercício em um ambiente sempre instável e inacabado.
Assim, a liberdade impõe contradições aos arcabouços jurídicos. No fundo, as leis carregam limitações, trazem um modo de dizer como deve-ser, uma forma de controle e um modo de punição. Mesmo regras que dizem garantir “a liberdade” estariam, assim, atravessadas por firmes estacas que parecem assegurar exactamente o seu oposto. Muitas leis que têm a liberdade como objecto estão aí para que não nos esqueçamos dos vivos mecanismos de censura entre nós.
Trato a ideia de liberdade, inclusive a de expressão, como uma experiência viva, relacional, incompleta, instável e, principalmente, em disputa, em jogo. Em ambientes democráticos, de humanidade, a liberdade de expressão será sempre, em todo tempo e o tempo todo, a experiência de libertação, da utopia do ser humano, da vida, da solidariedade, do profundo respeito e acolhimento da diversidade. Quem impõem essa condição à expressão, à manifestação é a palavra “liberdade”.
Já a opinião apresentada, por si só, é algo que, necessariamente, não se recorre à liberdade. Claro, se os pressupostos da liberdade estiverem em consonância com a opinião expressada, então, estaremos diante da liberdade de expressão. Caso contrário, teremos tão somente opinião.
Deixo mais claro: a opinião expressada, somente ela, é apenas uma forma, um modo, uma maneira de manifestação e, obrigatoriamente, não tem vinculações implicativas com liberdade. A opinião revelada, por exemplo, pode ter outros compromissos, inclusive, contrários ao da liberdade, como a morte, o ódio, a discriminação, o racismo, a violência.
Assim, nessas condições, não se pode reivindicar ou justificar o uso da “liberdade de expressão” para defender qualquer forma de opressão. É inconcebível imaginar a associação da liberdade de expressão com a defesa da pena de morte, da xenofobia, da intolerância, da censura. Quem opta por essas defesas recorre tão somente a uma opinião expressada. O impeditivo da justificativa do uso da liberdade de expressão está rigorosamente cravada na liberdade.
Bom, ao que se propõem os nossos meios de comunicação social? À liberdade de expressão ou tão somente à opinião expressada? Nossos compromissos são com a liberdade de expressão ou com a opinião manifestada para atender as mais abjectas intenções?
Ocorre que é no quotidiano, nas relações sociais, que está essa disputa subtil e desigual entre opinião expressada, muitas vezes com perspectiva de controle e impedimento, e as acções libertárias exigidas pela liberdade de expressão. Veja como isso é perverso: muitos se utilizam da opinião manifestada, usando uma retórica de uma liberdade completamente vazia de significação, para justificar a barbárie. Isso é incompatível com a liberdade de expressão.
Quando a emissora de TV portuguesa abriu todo espaço para a opinião de um sujeito da extrema-direita, que tem por base ditaduras (fala de liberdade), opressões e violências com as diferenças, o meio de comunicação participava directamente desse jogo retórico subtil, invertendo o papel da liberdade, contribuindo para a disseminação de uma cultura de ódio e de violência. Nessa entrevista, com esse conteúdo manifestadamente de ódio, não há liberdade de expressão, não há como se falar de “direito” à liberdade de expressão. O que existe é uma opinião expressada que ataca justamente à liberdade. Percebe
Manifestar-se é uma experiência da liberdade, um exercício de poder, uma acção política sustentada nos parâmetros da vida plena, da humanidade, da igualdade, da solidariedade, da democracia, do amor ao Outro como a Si Mesmo. Não é sem razão que a experiência da liberdade de expressão, por palavras e gestos, pode causa horror ao poder maioritário, instituído ou não. As forças políticas reaccionárias têm pavor da opinião livre, porque elas desnudam, retiram véus, são como luzes nas cavernas, faz brilhar os olhos, a mente e as grades em nosso redor.
Por isso, faço questão de reforçar que liberdade é uma experiência-acção livre, de libertação, que desamarra, solta, larga, livra, alforria. E uma das formas de liberdade é a expressão. Ora, é exactamente a palavra “liberdade” que impõe à condição de liberdade à expressão. Expressão, apenas e tão somente como modo de opinar, de dizer, de mostra e isso não implica necessariamente em liberdade. Se a opinião estiver assentada nas credenciais da liberdade, da vida ampla e plena, então exige-se um patamar humano civilizacional ao expressar-se.
Desse modo, não se pode aceitar, por exemplo, piadas, tiradas humorísticas, comentários nas redes sociais, entrevistas em jornais, revistas, sites, rádios e TVs com incitação ao ódio, violência, tortura, opressão, racismo porque essas barbáries não libertam o homem, ao contrário, censuram, apagam, humilham, matam. A experiência da liberdade é incompatível com quaisquer acções que objectivem a opressão do homem por outro homem. Não há liberdade para isso.
No caso da entrevista do sujeito de extrema-direita em canal de TV, não apenas a ERC, mas a sociedade precisa reagir e agir motivados pelo espírito da liberdade. Os meios de comunicação social precisam compreender que a opinião expressada ali tem por único fundamento à liberdade de expressão, a defesa fundamental da vida livre, que é completamente incompatível com a incitação, defesa e promoção de ódio, racismo, preconceito, tortura, ditadura, fascismo, violência.