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A presença de Narciso nas águas da internet

A presença de Narciso nas águas da internet

Quem nunca ouviu falar no mito de Narciso e Eco? O caminho percorrido desde a cultura grega antiga até o século XXI trouxe uma atualização quase que orgânica desse mito, seja em aspectos sociais ou como parafrenias. A trágica história do belo homem, Narciso (tema narkhé = torpor, como em narcótico para nós) é uma importante representação da vaidade humana. Admirado com sua própria imagem em um lago, o jovem pensa trata-se de algum espírito das águas. Não se contendo, baixa o rosto para beijar o seu reflexo e mergulha os braços para abraçar-se, mas o contato com a água faz sua imagem sumir e ele se sente desprezado. Dessa forma, Narciso ficou dias a admirar sua própria imagem na fonte. Sem comer ou beber seu corpo definha. A beleza e o vigor deixaram-no e assim Narciso morreu. A história do mito se completa com a sombra de Narciso atravessando o rio Estige, em direção ao Hades, e ela ainda debruça-se sobre suas águas para contemplar sua figura.

 O mito de Narciso influenciou muitos artistas ao longo dos séculos. Nas artes plásticas, há pinturas de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner, Salvador Dalí e Waterhouse. Na literatura, encontram-se várias passagens na obra do russo Fiódor Dostoevsky e na a obra do escritor inglês Oscar Wilde – o romance ‘Retrato de Dorian Gray’ seria uma representação do homoerotismo retratado no narcisismo. Os estudos psicanalíticos do narcisismo tomaram verdadeiro impulso com Freud em seu artigo intitulado ‘Introdução ao Narcisismo’. As primeiras observações do ‘pai da psicanálise’ procuram identificar a origem do narcisismo como um investimento libidinal do ego.

Os ‘narcisos’ contemporâneos encontraram outras águas para navegar. O reflexo da imagem no lago deu lugar ao ecrã dos computadores, tablets, smartphones e tudo que possa incorporar a cultura do compartilhamento. Grandes sociólogos e historiadores já chamavam a atenção para o excesso de exposição da intimidade na vida pública muito antes da internet, desde o século XVIII, mas, certamente, a ‘era’ digital trouxe uma espécie de contágio viral da necessidade de se tornar diferente, se destacar. Claro que tudo está ligado a sociedade de consumo. O consumo e o narcisismo que revolucionam esferas cultuais e comportamentais, devem ser pensado não apenas como um espelhos da vaidade individual, mas como podem representar mudanças significativas nas relações sociais. Isso é um passo importante na percepção de como esse espectro pode interessar diretamente ao entendimento das sociabilidades contemporâneas.

A possibilidade de ‘ver’ e ter ‘visibilidade’ pelas redes sociais digitais amplia significativamente comportamentos de diferenciação social e de referência. Assim como o culto ao corpo e o desenvolvimento de práticas narcísicas, a sociedade de consumo busca, incessantemente, estratégias para vender padrões de satisfação. Mesmo sendo uma necessidade individual, a felicidade se fundamenta em propósitos visíveis. O que toda essa discussão tem a ver com o Facebook? Tudo! Como uma grande vitrine, essa rede social – com seus mais de dois bilhões de usuários no mundo – tem servido como um reflexo das manifestações narcísicas contemporâneas de contemplação física ou intelectual, além de reforçar estereótipos de beleza através da publicização do consumo material e simbólico. Não só na timeline é possível fazer esse tipo de constatação, mas também nas fanpages que se proliferam com um número bastante significativo de seguidores. Páginas como: Fina e Rica; Bonita é você, EU SOU LINDA; Homens gostosos; As + gostosas do FACE apresentam milhares de ‘curtidas’ e reforçam o estereótipo de homens e mulheres magros, sarados, felizes e, acima de tudo, bem sucedidos.

Esse caráter efêmero da sociedade contemporânea gera a chamada paixão consumptiva (um tipo de paixão que se extingue em sua própria intensidade) pelas coisas e traz uma força dramática já que o desejo é muito maior do que o sentimento de posse. Por exemplo, nosso desejo de determinada roupa pode ser ardente, mas alguns dias depois de comprá-la e usá-la, ela já não nos entusiasma tanto, ou seja, a imaginação é mais forte na expectativa. E assim as relações vão se construindo. É claro que nem todos os usuários da rede apresentam esse comportamento. Estamos falando de algo bastante recorrente e de total conhecimento de quem acessa cotidianamente o Facebook, por exemplo.

Uma pesquisa feita por mim com estudantes universitários para a dissertação de mestrado mostrou que essa imagem pública mediatizada pelo Facebook traz um retorno de visibilidade. Cerca de 48% dos entrevistados disseram se incomodar quando os amigos do Facebook não curtem ou comentam suas fotos. Isso reflete uma necessidade de atenção, ou seja, como uma espécie de ‘vitrine’, o Facebook também é visto como um espelho de aprovação e popularidade. Portanto, no ambiente livre da internet é tolerável dizer aquela verdade que se pensa saber, assim como há possibilidade de expressar visões intolerantes; omitir o que se julga ser verdade e criar simulacros de si e das coisas. Nesse espaço o narcisismo e o consumo simbólico se potencializam para aceitação grupal ou são refutados, embora reconhecidos, como um estilo de vida contemporâneo.

Qualquer um pode ser possuído pelo espírito de Narciso no lago virtual e tão presente da internet. Mas cuidado! Como bem disse Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho” e há sempre o risco de se afogar em sua própria vaidade.

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