Cumprem-se 24 meses que o autor desta rúbrica iniciou a sua colaboração com A Pátria. Dois anos em que assinou mensalmente um texto de reflexão sobre os mais variados assuntos, desde a liderança e o significado do trabalho, ao sentido da vida e à busca da felicidade, passando por temas do momento, como sejam o caso do Boeing 737 Max, ou a palavra mais popular no ano de 2020.
A diversidade dos textos reflete não apenas a ocupação profissional do autor, mas também as suas experiências enquanto observador dos eventos que coloram a vida e a sociedade. Assim, algumas publicações informaram sobre os avanços em certas áreas da gestão e do comportamento organizacional. Por exemplo, o artigo de novembro de 2020 examinou a noção de propósito em empresas. Noutros textos exibiram-se opiniões informadas sobre tópicos de interesse geral, como por exemplo a intraduzibilidade da palavra “saudade” (julho de 2019).
O jornal A Pátria tem esta característica especial de permitir aos seus colunistas expressarem-se em total liberdade, como escreveu um dos seus criadores, Eduardo Leite, em dezembro de 2018. Explica Leite que o jornal visa apresentar “a diversidade de opiniões que nos formam e complementam, sem qualquer interesse de formar uma corrente única ou dominante, mas antes as várias correntes de opinião”, nas áreas da ciência, literatura, cultura, artes e conhecimento em geral.
Basta olhar aos artigos de abril de 2021 para conferir a diversidade de opiniões atrás aventada: a cafeína e a saúde (Niedja Santos), o cineasta Marcus Curvelo (Wesley Pereira de Castro, que assina outros textos em abril), o movimento das nacionalidades do século XIX (Diana Carvalho), as variantes do COVID-19 (Helder Paraná do Coutto, que rubrica outros textos), direitos humanos e a banalidade do mal (Eduardo Leite), Astor Piazolla (Maria Helena Garvão), setor bancário angolano (Manuel Mateus), gamificação na saúde (Cristina Vaz de Almeida), o cérebro e a pandemia (Roberta Bocchi).
Ao invés de fazer a apologia de A Pátria, ação desnecessária perante uma iniciativa que já se afirmou no panorama global da comunicação de pensamentos pensados em português (e transmitidos em português ou em inglês), o objetivo do presente texto é, isso sim, louvar não apenas a liberdade de expressão, mas também a liberdade de ação. Para tal, evoca-se o caso da superliga europeia.
A semana de 18 a 24 de abril foi extraordinária para o futebol mundial, em geral, e para o europeu, em particular. O conceito de superliga europeia, um dos mais arrojados e radicais na história do desporto-rei, nasceu e morreu em poucos dias. A história conta-se em poucas palavras: doze dos clubes mais ricos da Europa anunciaram no final do dia 18 a criação de uma liga de futebol exclusiva aos fundadores e a alguns clubes convidados. A primeira reação ao anúncio veio da FIFA, entidade máxima em matéria de futebol, que revelou opor-se à ideia e defender a equidade no desporto.
A poucos minutos do dealbar do dia 19, já o assunto havia extravasado para a política, com o presidente francês e o primeiro-ministro inglês a mostrarem o seu desagrado pela superliga. Na manhã de 2ª-feira, o banco norte-americano JPMorgan confirma que estava a financiar a superliga, e pouco depois a Sky Sports revela o valor do investimento: 5 mil milhões de euros (a atual Liga dos Campeões gera 2 mil milhões).
Nas horas seguintes as reações adversas sucedem-se, com vozes discordantes das federações nacionais, de outros poderosos clubes do continente, da Comissão Europeia, da UEFA, e de várias personalidades futebolísticas e não futebolísticas. As pressões sobre os 12 aumentam, e sucedem-se as ameaças de exclusão de competições de jogadores e clubes. Em Londres, na tarde de 3ª-feira, milhares de adeptos manifestam-se antes de um jogo, podendo ler-se num dos cartazes “criado pelos pobres, roubado pelos ricos”. No final desse dia, os seis clubes ingleses fundadores anunciam a saída do grupo. Na 4ª de manhã ocorre o primeiro abandono espanhol, e 15 minutos depois sai um clube italiano. À tarde saem os restantes dois clubes italianos, ficando assim apenas dois clubes espanhóis a representar esta superliga.
A pandemia e os resultantes problemas financeiros dos grandes clubes europeus foram evocados para justificar a criação desde círculo exclusivo, mas muitos apontaram para a ganância e cobiça dos mais ricos, como se a ambição dos ricos em se tornar super-ricos fosse menos legítima do que ambição dos pobres ou remediados, em se tornar remediados ou ricos, respetivamente. Quer isto dizer que é compreensível o desejo orientado por fins puramente económicos, para explicar a criação de uma liga desportiva baseada em modelos de negócio geradores de receitas astronómicas, e independentes de entidades que monopolizam e controlam a atividade (como o fazem, em boa verdade, a FIFA e a UEFA). Tais modelos existem noutros desportos, como sejam, nos EUA, o basquetebol, o futebol americano, e o basebol.
A liberdade de expressão e ação é apanágio das sociedades modernas, por muito arrojadas e radicais que sejam as ideias idealizadas e as ações acionadas. Mas também se percebe a reação em cadeia que a tentativa de cartelismo do futebol provocou nos europeus, ensinados e treinados para viver e trabalhar em sistemas económicos competitivos, mas culturalmente educados para colocar os valores sociais e humanísticos no centro das suas existências. O problema da superliga não foi o exclusivismo de alguns; foi a ameaça que representou à essência do modelo europeu de futebol.
O futebol sempre teve um papel identitário para os europeus, como o tem para os sul-americanos. É o desporto de todos, com todos, para todos. É a unidade na diversidade. É acreditar-se num futuro melhor, em que os mais fracos ou mais pobres podem tornar-se mais fortes e mais ricos. É respirar a liberdade, a igualdade, e a fraternidade. Nos sistemas europeu e sul-americano, clubes pequenos e remediados podem ganhar a clubes milionários, mostrando que é possível vencer, jogando-se melhor em campo. Apenas nas últimas décadas se acrescentou ao futebol uma função económica importante, devendo em justa causa realçar-se a contribuição da atividade para as finanças nacionais. A criação de ligas em que apenas alguns podem entrar e ganhar pode aplicar-se a muitas coisas, mas não a um desporto que tanto significa para tantos.
Tal como houve liberdade para avançar com a ideia da superliga, ainda que baseada numa grandiosidade estulta e afastada da maioria, também houve a força, lavrada por adeptos e seus representantes – FIFA, políticos, etc., para mostrar que a ideia contrariava os ideais elementares da família europeia, e de muitas outras famílias mundiais.
Esses mesmos ideais podem ser encontrados na expressão da liberdade individual de pensamento e reflexão, alicerces do jornal A Pátria.
2 respostas
Nunca imaginei que fosse um psicólogo a fornecer uma explicação completa de toda a trama envolvida neste episódio da superliga.
Parabéns!
Nem eu, caro amigo, nem eu… Mas sendo um objeto organizacional, requer a nossa observação e atenção. Abraço.