Quem acompanha essa coluna sabe que estamos apresentado, por partes, os resultados de uma longa investigação, e que resultou em uma tese de doutorado (UFMG, dezembro de 2017), sobre a invisibilização da lusofonia no Brasil nos primeiros 20 anos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) (1996-2016). Nos textos anteriores, vimos os números que comprovam essa dura ausência por meio dos jornais brasileiros Folha de S.Paulo e O Globo, e também já começamos a apresentar nos últimos textos o porquê dessa opção do Brasil em não querer ser conhecido como membro da CPLP.
No texto de hoje, aprofundamos um pouco mais essa rejeição e combate. Vamos olhar como o Brasil tratou do acordo ortográfico da língua portuguesa nesses 20 anos da comunidade. Informo que estamos a vasculhar os rastros das raras notícias deixadas nos dois jornais brasileiros sobre o tema nas duas décadas. O curioso é que esses poucos restos revelam muito. Vejamos.
As poucas notícias sobre a unificação da escrita na comunidade lusófona concentraram-se em O Globo. Contudo, os agenciamentos propostos pelos dois jornais são rigorosamente semelhantes, a começar pela completa ausência da participação nesse debate dos países africanos e do Timor-Leste, com mais ênfase em um primeiro momento. A reforma ortográfica da língua portuguesa, segundo a Folha de S.Paulo e O Globo, somente dizia respeito ao Brasil e a Portugal. As enormes contribuições de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Moçambique não foram vistas, não existiram nesses jornais. Timor Leste quase não foi lembrando quando o assunto foi esse acordo.
Essa completa invisibilização tem lastro profundamente histórico. Lembra Alfredo Bosi (1996) sobre as expansões imperiais do século XV e que resultaram no colonialismo que ao não-europeu sempre se negou a possibilidade de protagonismo, de narrativa. Ao Outro não é dado o direito a falar, a narrar e narrar-se. Entretanto, observe que no decorrer dos insucessos desse acordo ortográfico ao longo dos anos no Brasil e em Portugal, as nações africanas lusófonas passaram a ganhar visibilização para que elas pudessem ser responsabilizadas pelo que O Globo, em 27 de dezembro de 2008, chamou de “desacordo” da língua, impondo cinicamente a culpa pelo não acordo aos países africanos lusófonos.
Desde 18 de julho de 1998, O Globo, dois anos depois de criada oficialmente a CPLP, já apresentava as possíveis mudanças na escrita do português no Brasil se um acordo ortográfico fosse aprovado. O jornal destacava que o entendimento “depende de Portugal”. As nações africanas lusófonas estão invisíveis aqui, não aparecem, não são citadas. É como se apenas Portugal e Brasil falassem a língua portuguesa no mundo. Na edição de 22 de outubro de 2004, a Folha de S.Paulo (Cotidiano, p. 4) revelou um pretenso protagonismo brasileiro nessa reforma ortográfica: “Brasil dá o primeiro passo para unificar a língua”.
Contudo, os passos iniciais na tentativa de unificação da escrita não são do Brasil. Em 1990, já existia um acordo ortográfico entre os países lusófonos, mas sem efeito nenhum. Com a CPLP, em 1996, esse debate retornou, e somente Portugal e Cabo Verde (sim o país africano lusófono), assinaram o acordo. O Brasil, anos depois, foi o terceiro a manifestar interesse.
Em 2007, depois de anos sem qualquer implementação real desse acordo, O Globo faz uma espécie de balanço sobre ele e externa um tom de cobrança ao “país sede da língua”, Portugal. Na edição de 01 de setembro daquele ano, o título do caderno de cultura daquele jornal, Prosa & Verso, é “Trava-língua”. Nesse registro, O Globo critica a demora na implementação no acordo em razão de “conservadores portugueses” que não querem as alterações na escrita. O jornal também denuncia a falta de interesse do Brasil. Na prática, o texto revela uma espécie de dependência “natural” do Brasil em relação a Portugal, além de insistir na invisibilização dos países da África lusófona e do Timor-Leste nesse tema. Essa ausência de “voz” africana, timorense, indiana, galega no debate também está no uso, pelo jornal, das campainhas do despertador da ilustração da notícia. Lá estão apenas com cores das bandeiras do Brasil e de Portugal.
A discussão sobre a reforma ortográfica da língua portuguesa mereceu um editorial na Folha de S.Paulo na edição de 25 de maio de 2008. O jornal criticou o acordo entre os países da CPLP para a unificação, alegando que se vinha gastando muito tempo para poucos resultados. O editorial não informa sobre qualquer tipo de participação dos países lusófonos africanos e do Timor-Leste nesse debate. A Folha destaca o idioma, as mudanças e a relação entre Brasil e Portugal, sem qualquer ponto que remeta às interseções históricas e identitárias da comunidade. O editorial encerra com uma proposta: “Ótimo seria se o governo brasileiro seguisse o de Portugal, abandonando a pressa injustificável” (Folha, 25/05/2008, p. 2).
Após aprovado no governo português, tendo apoio do presidente de Portugal, e de ter passado pelo parlamento daquele país no primeiro semestre de 2008, O Globo, na edição de 30 de setembro, noticiou que o presidente Lula assinou a reforma ortográfica e que as mudanças estariam valendo no ano seguinte. A assinatura aconteceu na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, no dia em se lembravam os 100 anos da morte de Machado de Assis. Nesse registro, apesar do acordo não envolver a participação dos países lusófonos da África e do Timor-Leste (completamente ausentes), foi o presidente Lula quem os convocou pela primeira vez ali.
Segundo Lula, o acordo “aproxima o Brasil de suas raízes históricas”. Nas falas do presidente, reproduzidas pelo jornal, estão nítidas as marcações e dispositivos históricos e identitários entre nós, mas que estão somente na fala direta de Lula, e não do jornal. Disse Lula: “Quero destacar o imprescindível regaste de nossos laços substantivos com a África, em particular com a África de língua portuguesa, que para nós representa muito mais do que uma prioridade geopolítica. Diz respeito à nossa alma, à nossa identidade como nação multiétnica e multicultural, ao próprio destino da civilização brasileira”(O Globo, 30/09/2008, p. 13).
A Folha de S.Paulo também publicou no mesmo dia de O Globo, na sessão Cotidiano, que o presidente Lula tinha assinado o acordo para implementar a reforma ortográfica e, no texto da notícia, também existem falas diretas atribuídas ao presidente, em que ele inclui a África nesse processo. Lula, na Folha, disse que o acordo é “como um ‘reencontro do Brasil consigo mesmo’ […] Ele também propicia um novo impulso ao intercâmbio Brasil/Portugal e o ‘imprescindível resgate’ dos ‘laços substantivos com a África, em particular com a África de língua portuguesa’” (Folha, 30/09/2008, p.1).
Na prática, o acordo ortográfico na CPLP não entrou em vigor no período esperado no Brasil. E para a Folha e O Globo os responsáveis por esse insucesso foram os países africanos. Ainda em 2008, na edição de 15 de março, O Globo traz uma entrevista com o filólogo José Pereira da Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele diz que o novo acordo ortográfico “terá muitas dificuldades de ser levado adiante em Moçambique” porque aquele país “tem um português fraco frente aos dialetos” (O Globo, 15/03/2008, p. 2). “Português fraco”? O filólogo avalia que os moçambicanos somente “aplicarão o acordo se perceberem que a língua dos ex-colonizadores representa alguma vantagem econômica e política” (O Globo, 15/03/2008, p.2).
Nesse registro não aparece nenhum outro país africano lusófono, apenas Moçambique, e tampouco faz-se menção a Timor-Leste e a todas as regiões lusófonas. Todavia, o título da notícia afirma que “Acordo precisa empolgar os africanos”. Isto é, os africanos são o problema. Na foto que ilustra a notícia, não há africanos. Assinam o acordo os presidentes de Portugal, Cavaco Silva, e Lula, do Brasil. Reforçamos: afirma o jornal que o “Acordo precisa empolgar os africanos”, ou seja, “os africanos”, sempre eles, agora aparecem, estão ali enquanto a culpa, a doença, a miséria visível, o atraso, o insucesso. Na Folha de S.Paulo, em 11 de janeiro de 2009, quando já se sabia que a unificação da ortografia não tinha mais data certa para entrar em vigor, o jornal responsabiliza, de forma direta “os países lusófonos da África”.
“Com exceção de Portugal, os outros países que ratificaram o Acordo – Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – parecem não estar dando muita bola para mudança na ortografia” (Folha, 11/01/2009, p. 5). A notícia informa que as quatro nações lusófonas que assinaram o acordo ainda não o validaram. Na sequência, esse jornal complementa: “Angola e Moçambique não ratificaram e nem têm prazo para isso […]. Timor Leste não assinou por conta da guerra da independência. Na Guiné-Bissau nem se conhece esse acordo” (Folha, 11/01/2009, p. 5).
Diferentemente dos registros anteriores, em que os países dessa comunidade lusófona na África e o Timor-Leste estavam completamente ausentes, invisíveis nesse debate, agora, para responsabilizá-los pelo fracasso do acordo, “os africanos” passam a constar como figuras visíveis e centrais nessas narrativas, inclusive nos títulos, constituindo-se presenças, mesmo que ausentes. O lema de Fernando Pessoa, de que “a minha pátria é a língua portuguesa” parece encontrar enormes e múltiplos desafios e no Brasil, mas que é preciso enfrenta-los.
No próximo texto dessa coluna continuaremos revelando como o Brasil não quis enxergar a comunidade lusófona e como partiu para combater qualquer possibilidade de reconhecimento nela. Os temas que vamos tratar são mobilidade e conflitos, ou seja, como os dois maiores jornais brasileiros apresentam essas questões aqui e sua relação com a CPLP.
REFERÊNCIA
Bosi, A. (1996). Dialética da colonização. 3ª edição. São Paulo: Cia. das Letras.