A publicidade que antecipa as sessões do longa-metragem formosino “A Tristeza” (2021, de Rob Jabbaz) faz com que pensemos que trata-se de uma obra oportunista: no cartaz, há a citação de que este é “um dos mais violentos e depravados filmes de zumbis jamais realizados” e os diálogos fazem menção direta a episódios que vivenciamos durante a pandemia da Covid-19. Logo no começo, por exemplo, um personagem ouve um apresentador de ‘podcast’ reclamar que os cientistas estariam “politizando o vírus, com intenções eleitorais”. Soa-nos familiar?
A despeito do exagero de algumas situações e da extrema violência gráfica de várias seqüências, há muito em comum com a nossa realidade, infelizmente. Dessa maneira, os jargões espalhafatosos de divulgação são absolutamente justificados: o filme é assombroso! E exorta-nos a prestar ainda mais atenção acerca do que ocorre ao nosso redor. Tudo é político, não cansamos de repetir: um abraço na cama, enquanto amanhece o dia, inclusive.
Quem adentra a sessão de “A Tristeza” sem saber especificamente do que se trata – caso isso seja possível – pensará tratar-se de uma abordagem existencial sobre a vida pré-matrimonial (o que, de certa forma, procede): somos apresentados a um casal jovem e bonito, que acorda antes mesmo do despertador tocar. Trocam carícias e declaram amor duradouro, até que surge um dissabor inevitável: ela quer viajar nas férias exíguas de que dispõe, enquanto ele recusa, pois aceitara um trabalho importante, no mesmo período. É essa a tristeza enfatizada no título do filme? Sim e não…
Após a reconciliação decorrente – quantas e quantas vezes isso não é imprescindível em nossos relacionamentos cotidianos? –, eles se despedem: ela, Kat (Regina Lei) vai para o escritório em que trabalha, enquanto ele, Jim (Berant Zhu), espera o seu telemóvel recarregar a bateria. Ele a deixa numa estação de metrô – e o que se segue é absolutamente chocante. As advertências acerca do mal-estar que as cenas de perseguição e tortura nos causam não são fortuitas: é um dos filmes mais intradiegeticamente desagradáveis dos últimos tempos!
De acordo com a trama, um vírus recém-difundido – apelidado Alvin – parece causar uma simples gripe, a princípio, mas logo os infectados começam a demonstrar comportamentos sobremaneira agressivos. Na verdade, convertem-se em sádicos impiedosos, que não hesitam em cortar os dedos de um vizinho com uma tesoura de podagem ou introduzir arame farpado nos órgãos genitais de um transeunte. As cenas sanguinolentas são abundantes e os gritos são quase onipresentes. Mas nada acontece de maneira gratuita: há um evidente propósito admoestativo no roteiro (escrito pelo próprio diretor, surpreendentemente estreante em longas-metragens), conforme percebemos na racionalização excessiva do instante em que um virologista (Lan Wei-Hua) encontra Kat coberta de sangue…
Numa das circunstâncias mais explicitamente ideológicas do filme, depois que o presidente de Taiwan faz um pronunciamento televisivo, dois homens começam a brigar num hospital: um deles reclama que não votou no referido político, enquanto o outro parece apoiá-lo. As constantes discussões envolvendo bolsonaristas e esquerdistas no Brasil têm muito a ver com isso, e não é por acaso, já que as pessoas estão cada vez mais iracundas hoje em dia, por causa da influência beligerante das ditas “redes sociais”. Num instante anterior, um executivo melancólico (Wang Tzu-Chiang) tenta conversar com Kat, quando a surpreende lendo um livro no metrô, enquanto os demais passageiros mexem nos respectivos telefones celulares. O que poderia ser uma benfazeja aproximação entre desconhecidos torna-se uma arenga estendida, o que é também uma firula, visto que as ameaças proferidas pelos infectados não condizem tanto com o diagnóstico de fúria exacerbada.
Enquanto Kat foge desesperada, depois de uma chacina impactante no vagão ferroviário em que estava, Jim percorre as ruas da cidade, em busca dela. Os relatos sobre espancamentos e estupros são cada vez mais numerosos, o que acentua outro aspecto inteligente do enredo: diversas vezes, o casal central depara-se com possíveis crimes, mas eles ignoram, pois somos cotidianamente acostumados a seguir em frente, enquanto indivíduos sofrem ao nosso redor. E isso desemboca numa contradição discursiva, quando os infectados transam de maneira orgiática, como se esse tipo de ato sexual estivesse inquestionavelmente equiparado à violência. Mas nada que atrapalhe a validade e a urgência deste soco cinematográfico de altíssimo quilate!
Por mais que se note que o filme adira a convenções reconhecíveis do gênero terror – lembrando tanto os clássicos de George A. Romero [1940-2017] quanto o excelente “Extermínio” (2002, de Danny Boyle) –, as suas prerrogativas tramáticas são bastante originais. Segundo o virologista, tudo o que acontece tem a ver com uma deformação do sistema límbico do cérebro, responsável pelo controle emocional de nossos instintos. Em âmbito biológico, isso reitera as conformações políticas das interações humanas: o derradeiro plano é uma metonímia cabal, elevando o título da obra a patamares desesperadores. Filmaço!
Por motivos óbvios, durante a sessão ficamos apreensivos quanto aos estímulos que o filme pode estimular em espectadores pouco reflexivos, que sentir-se-iam tentados a repetir as atrocidades cometidas pelos figurantes – um deles, inclusive, chega a perguntar se bateu um determinado recorde de violência, após assassinar algumas pessoas. Já foi apregoado inúmeras vezes que o Cinema estimula a violência, de modo que este é um debate perenemente em aberto, diante da relevância e impacto de produções como esta: será que o público entenderá a mensagem ou reagiráde forma meramente colérica ou entusiasmada ao que é exibido? Política requer sobretudo educação (em todos os sentidos do vocábulo)!
Wesley Pereira de Castro.