Ao mergulhar nos poucos rastros das notícias nos jornais brasileiros O Globo e Folha de S.Paulo sobre a lusofonia nos 20 anos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, chegamos a uma investigação curiosa: a aparição, no Brasil, dos presidentes e primeiros-ministros dos países da CPLP. Localizamos entrevistas e pequenas notícias em que eles tiveram alguma relevância. Na Folha existem apenas quatro menções a essas fontes em duas décadas. Em O Globo foram dez registros, sendo sete com presidentes ou primeiros-ministros portugueses. Não existem notícias/entrevistas com presidentes de Angola, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe. Vejamos alguns casos.
Na edição de 28 de janeiro de 2001, O Globo (O Mundo, p. 41) traz uma entrevista com o presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, que estava em Brasília. Ele afirma que o “mundo civilizado” nunca se interessou pelo desenvolvimento da África, e que os africanos sempre estiveram abandonados. Ao que parecia, estavam dadas aí as condições para que esse jornal pudesse avançar no sentido de discutir a CPLP e o Brasil, trazendo as relações históricas, identitárias e comunitárias. Porém, O Globo produz trama em perguntas para que Chissano reforçasse o estereótipo de miséria, doenças, conflitos armados, golpes de estados, corrupção, ou seja, conformando um regime de visibilização de rejeição, repulsa e criminalização.
Também em 2001, a Folha de S.Paulo, em 1º de julho, publicou uma entrevista com o mesmo Chissano. O jornal enfatiza as contradições de um presidente de uma nação miserável, que teria formação comunista, mas que governava na lógica neoliberal. Logo no início do texto, o jornal destaca que Chissano recebeu a Folha para a entrevista em “sua suíte no luxuoso Hotel Yacht y Golf Club de Assunção”, onde se realizava uma conferência do Mercosul. O jornal não se esqueceu de afirmar que Moçambique é um dos países mais pobres do mundo, mas o seu presidente estava em “uma suíte no luxuoso hotel” no Paraguai.
Na entrevista, a Folha leva Chissano a fazer críticas à CPLP, entidade que o jornal chama de “pequeno mundo dos países de língua portuguesa”, “sem sentido objetivo e prático” (Folha, 01/07/2001, p. 21). O presidente de Moçambique disse que a CPLP, apesar de ainda ser um “acordo de cooperação cultural”, poderia ser um instrumento de unidade em razão do idioma. Segundo ele, a língua tem o papel de despertar atenções das sociedades. “Mesmo na parte cultural, há muitos valores a descobrir. Nós não conhecemos todos os valores que o Brasil tem, e o Brasil não conhece todos os que Moçambique tem” (Folha, 01/07/2001, p. 21).
O primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, foi entrevistado por O Globo em 13 de janeiro de 2008. O texto principal tratava da rota de tráfico de drogas que saía de Cabo Verde e Guiné-Bissau e chegava a Portugal e à Espanha. A notícia “Trampolim africano para a droga na Europa” detalha esse percurso e alerta que o Brasil começou a ser via desses traficantes por conta da CPLP. É apenas nesse momento que o jornal lembra que Guiné Bissau, Cabo Verde e Brasil fazem parte de uma comunidade. Busca-se, assim, a máxima visibilização do Outro, sugerindo que existe aí uma raiz “natural” do mal, que estaria na África.
Esse texto reforça a criminalização, impondo controle e punição. O Globo trata a Guiné-Bissau como “narcoestado”. Maria Neves é o único governante ouvido na notícia e sua fala, em um quadro (box) ao lado, teve o título: “Nossa segurança é a da Europa”. Ele diz que seu país tem feito esforços para reduzir o tráfico, mas que parte da segurança em Cabo Verde foi entregue às forças internacionais. Fica explícita a relação de dependência ainda colonial, mas Neves, compromete os outros países: “Precisamos mostrar que a segurança de Cabo Verde é também a segurança do Brasil e da Europa” (O Globo, 13/01/2008, p. 39).
Nos 20 anos da CPLP foram registrados conflitos que envolveram as nações dessa comunidade. Um dos acontecimentos mais dramáticos foi à luta pela independência do Timor-Leste. Os dois jornais têm notícias sobre ela e apresentaram uma entrevista com governantes do Timor. Na edição de 29 de janeiro de 2008, José Ramos-Horta, presidente daquele país, foi entrevistado em O Globo. Os temas centrais abordados foram violência, pobreza e falta de pessoal qualificado nas funções públicas para executar os programas de um governo iniciado em 2002. Diante desse quadro de carência, a frase de Ramos-Horta é o título da entrevista: “O Timor precisa de mais brasileiros”. Ele diz que o Governo Lula tinha mandado 250 professores e técnicos para a nova nação lusófona, mas as necessidades ainda eram grandes. Horta pede maior participação de Brasil e Portugal no desenvolvimento do Timor-Leste.
Essa também foi a tônica da entrevista que o mesmo Ramos-Horta concedeu à Folha em 4 de outubro de 2013. Nesse registro, ele é enfático na cobrança de maior participação do Brasil na CPLP, o que denuncia a falta de interesse do governo brasileiro e a prática de invisibilização dessa comunidade. Ramos-Horta pediu que o Brasil ajudasse nas eleições na Guiné-Bissau, país que tinha passado por golpe de estado. Para o timorense, era fundamental também que o Brasil montasse ainda uma TV, a exemplo da Al Jazeera, para reunir os países da CPLP. Na notícia, o jornal se encarrega de informar que Ramos-Horta não iria conseguir nem a ajuda brasileira para as eleições em Guiné-Bissau, “uma das nações mais pobres do mundo” e um “narcoestado” (Folha, 04/10/2013, p. 16), nem qualquer ação para criar uma tv da CPLP.
Em relação aos registros com governantes de Portugal e a CPLP, o destaque é para o espaço dado, desde o início dessa entidade, em O Globo. Antes mesmo da institucionalização da comunidade, o jornal trouxe uma entrevista com o primeiro-ministro António Guterres. O título e as primeiras frases são explícitos das relações entre Brasil e Portugal diante da CPLP: “Vamos tratar muito bem os brasileiros” é a frase-título, a voz do primeiro-ministro. O Globo diz que Guterres chega ao Brasil para “virar uma página negra da história do relacionamento Brasil-Portugal” (O Globo, 14/04/1996, p. 12). Como “virar uma página negra da história”? Apagando as nações africanas? Esquecendo a barbárie da escravidão de índios e de negros?
Ao que parece, esses jornais, empresas capitalistas de viés eurocêntrico e estadunidense, seguiram a proposta de “virar uma página negra” ao invisibilizar à comunidade lusófona em razão da presença africana. O jornal e o ministro focam nas “oportunidades” de exploração de “nossas empresas” (Brasil-Portugal), o que faz O Globo perguntar se a CPLP vai abrir portas da Europa para o Brasil. A resposta foi: “as empresas brasileiras terão muito mais facilidade para se instalarem no mercado europeu se usarem Portugal como plataforma de lançamento” (O Globo, 14/04/1996, p. 12). Aqui é que se pode entender a frase-título da entrevista: “Vamos tratar muito bem os brasileiros”, ou seja, os brasileiros ricos, com condições para usar Portugal como “plataforma de lançamento” para que cheguem ao mercado europeu.
A abordagem apresentada em O Globo com Guterres foi reforçada pelo presidente de Portugal Jorge Sampaio. Em 10 de setembro de 1997, O Globo (O País, p.8) publicou: “Presidente de Portugal reafirma amizade com Brasil”. No registro, a CPLP foi reduzida ao Brasil e a Portugal. Os demais países não existiram. Em O Globo o presidente disse: o “Brasil tem muito a ganhar” com a CPLP porque “as empresas” vão ter acesso à Europa, por Portugal. Essa lógica de “tratar muito bem os brasileiros”, os brasileiros ricos e suas empresas, foi uma preocupação constante dos dois jornais nas entrevistas e notícias com os dirigentes políticos portugueses. Isto é, mais uma vez a questão do Outro tem forte fundamentação econômica. Ele será repelido ou será desejado a depender de sua capacidade de investir, mesmo sendo uma diferença.
Em 6 de agosto de 2002, O Globo entrevistou o primeiro-ministro português Durão Barroso. O título já era uma resposta dele ao jornal que confirmava os registros anteriores: “Status especial para brasileiros”. Entretanto, nessa notícia enxerga-se mais. Barroso foi entrevistado em Brasília, em meio a uma conferência da CPLP. O Globo insiste no “status especial para brasileiros”, mas quer saber sobre a mobilidade dos Outros (africanos e timorenses) dessa comunidade. Barroso atende às expectativas do jornal ao afirmar que não vai haver portas escancaradas em Portugal para imigrantes da comunidade dos países de língua portuguesa. “Estão previstas exceções para lusófonos na nova lei que está sendo elaborada” (O Globo, 06/08/2002, p. 30). Dois anos depois, a Folha entrevistou esse mesmo primeiro-ministro. Em 7 de março de 2004 (Brasil, p. 8), ele disse que Portugal estava aberto para receber brasileiros, mas reclamou “dos pequenos investimentos das empresas brasileiras”. Ao que parece, o critério fundamental para a livre circulação na comunidade é o econômico.
Em outro recorte, O Globo aprofunda as visões dos dirigentes portugueses sobre a comunidade lusófona. Em razão da “comemoração dos 500 anos do Brasil”, o jornal entrevista o presidente Jorge Sampaio, convidado pelo governo brasileiro para as “festividades”. Os presidentes dos países da África lusófona não foram entrevistados e nem existe a informação no jornal se tinham sido convidados para o evento. Em 20 de abril de 2000, O Globo inicia a entrevista com Jorge Sampaio perguntando se as relações entre Brasil e Portugal “estão condenadas a ficar apenas nos aspectos afetivos e históricos” (O Globo, 20/04/2000, p. 33). Essa pergunta liga a história e as relações identitárias entre metrópole e colônias aos “aspectos afetivos”. É a mesma lógica que a Folha, em 03/11/2003, usou para afirmar que Lula fala em “tom emocional” quando se referia a escravos e a dívida histórica do Brasil e África.
Nesse registro de 2000, O Globo buscava saber do presidente de Portugal quais os benefícios para as empresas brasileiras com a CPLP. Sampaio não enfrentou a questão econômica de forma direta, mas disse que “os laços afetivos e históricos” entre os dois países são um “privilégio” (O Globo, 20/04/2000, p. 33). Apesar de destacar os “laços”, o presidente de Portugal e O Globo trataram a comunidade lusófona sem povos africanos e o Timor-Leste. E aqui está uma parte fundamental do regime de visibilização: a configuração de uma experiência narrativa do invisível que, como diz Cunha (2006, p. 101), “pressupõe apagar algo que positivamente existia (a violência da colonização, o sistema escravagista e a multidão de negros que povoavam o país) e, ao mesmo tempo, pressupõe criar algo que positivamente nunca existiu: o consórcio harmonioso entre colonizador e o habitante natural da terra”.
A sequência da entrevista, Jorge Sampaio confirma a análise acima: “aos olhos dos nossos valores de hoje, fizeram-se coisas terríveis durante três séculos de colonização portuguesa” (O Globo, 20/04/2000, p. 33), disse Sampaio buscando imunizar-se de algum tipo de dívida histórica. O presidente de Portugal, no evento dos “500 anos”, propõe uma reencenação do mito do descobrimento, com o devido apagamento das barbáries. Ele afirma que estava no Brasil para “comemorar a descoberta do Novo Mundo, um dos maiores feitos dos portugueses […] Tenho orgulho de representar o povo que escreveu essas páginas da História da Humanidade” (O Globo, 20/04/2000, p. 33).
Na próxima semana vamos revelar como os dois jornais brasileiros trataram de vários outros temas, inclusive do acordo ortográfico, envolvendo a CPLP, nos 20 anos dessa entidade.
Referência
Cunha, E. L. (2006). Estampas do imaginário: literatura, história e identidade cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG.