Entre os anos de 2014 e 2017, realizei uma longa investigação no Doutoramento em Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, no Brasil. Estudei sobre o jornalismo e seus modos de visibilização e de invisibilização. Interessava-me, desde sempre, aquilo que a comunicação social buscava esconder, ocultar, apagar, tornar invisível, isto é, ir para além do que foi dito e visto, daquilo que estava visível.
O objeto que investiguei à luz da tensão visível/invisível foi a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Queria saber como o Brasil noticiou a CPLP as temáticas que a envolve nos 20 anos dessa comunidade da qual somos parte. Em outras palavras, a lusofonia foi visível ou invisível no Brasil? Se era visível ou se esteve invisível nas duas décadas eu buscava saber o porquê. Para essa tarefa escolhi os dois maiores jornais brasileiros, O Globo e a Folha de S. Paulo. Eles pertencem a empresas diferentes e fazem cobertura internacional.
Essa investigação foi extensa e minuciosa. Era preciso debruçar sobre um acervo gigantesco desses dois jornais diários e encontrar as notícias que tratassem da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, da lusofonia, dos países lusófonos, das nações lusófonas. As buscas ocorreram a partir das edições de 1º de janeiro de 1996, seis meses antes da CPLP ter sido criada, e se estendeu até as edições de 31 de dezembro de 2016. Cada jornal, no período de 20 anos, fez circular 7.300 edições, com um número quase incalculável de páginas e de notícias.
Cataloguei dos acervos as notícias, reportagens, entrevistas e editoriais sobre a CPLP. Não considerei “notinhas” em colunas, artigos de “opinião”, cartas de leitores e anúncios de publicidade. Depois de vários levantamentos, checagens, correções, retorno às buscas, novas checagens chegamos a números e dados que revelam e denunciam um profunda invisibilização no Brasil da CPLP e de todas as temáticas sobre a comunidade. Na ótica dos dois maiores jornais brasileiros, a maior nação lusófona do mundo não reconhece sua comunidade. E o mais grave, rejeita-a.
No jornal Folha de S.Paulo, o resultado da sondagem foi de somente 80 registros sobre a comunidade lusófona em 20 anos da CPLP, uma média de apenas 4 notas por ano. Caso tomasse a publicação de uma notícia da comunidade em dias diferentes, como referência, teríamos 1,09% das 7.300 edições da Folha com algum registro sobre a CPLP nas duas décadas. Assim, diante do grande volume de edições, páginas e de incalculável quantidade de notícias nesse longo período, dificilmente é possível estabelecer alguma memória sobre a CPLP para o leitor cotidiano do jornal. Essa profunda inexistência se amplia nas audiências esporádicas.
A investigação em O Globo resultou em apenas 81 registros, uma média anual de somente 4,05 notícias. Assim como o jornal paulista, O Globo também imprimiu, de domingo a domingo, 7.300 edições nesse período. Se, hipoteticamente, considerássemos a publicação de uma das notícias sobre a CPLP naquele periódico, em dias diferentes nos 20 anos, poderíamos ter, aproximadamente, apenas 1,1% do total das edições com algum registro sobre a CPLP.
Chamou atenção o baixíssimo número de registros, bem próximo nos dois jornais: 80 na Folha, e 81 em O Globo, o que nos obrigou redobrar as atenções sobre os critérios e refazer algumas vezes esse levantamento. Todavia, os números foram confirmados. O não interesse pela comunidade lusófona, pela CPLP, foi muito semelhante nos dois jornais, mesmo periódicos localizados em estados diferentes e que pertencem a grupos editoriais distintos, contudo eles estiveram alinhados para a invisibilização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Além de ter um volume de notícias baixo e próximo, percebi que as frequências de registros por ano também são vizinhas, apresentando pequenas variações em alguns anos. Em 1996, quando a CPLP foi oficializada, O Globo abriu mais espaço para essa iniciativa do que a Folha. Naquele ano, o jornal carioca trouxe entrevistas e notícias sobre a criação da entidade lusófona. A Folha, em 1996, resumiu-se a cobrir a viagem do presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso a Lisboa para ao ato de criação da CPLP.
No ano de 2004, os dois jornais aumentaram um pouco a cobertura sobre a lusofonia em relação à média de registros dos anos anteriores. A interpretação desse dado liga-se ao fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter assumido o Governo do Brasil no ano anterior e, em 2004, realizou várias viagens pela África, principalmente às nações lusófonas. Tanto a Folha quanto O Globo cobriram esses eventos, e a CPLP ganhou um pouco de fôlego no governo, entrando nas pautas dos jornais em razão da força da fonte primária: o presidente da República.
O ano de 2008 registra o maior pico de notícias sobre a comunidade lusófona nos jornais brasileiros, inclusive com o mesmo número: 12 em cada. Naquele ano, o governo brasileiro assinou o Acordo Ortográfico, o que gerou debates, notícias e reportagens sobre as mudanças na escrita no Brasil. Além disso, também em 2008, Ramos-Horta, presidente eleito do Timor-Leste, sofreu um atentado e o país voltou a ser ameaçado por um golpe. O Timor já aparecia na editoria internacional dos dois jornais por conta da luta pela independência. Houve, inclusive, uma mobilização personalidades brasileiras que deram voz à causa timorense.
Um dado curioso é que, além de poucos, os registros sobre a comunidade lusófona foram publicados de forma concentrada em dias muito próximos. Por exemplo, a Folha traz 5 registros sobre a CPLP em 1996, mas todos no mês de julho, entre os dias 14 a 18. Antes e depois desses dias, nenhuma notícia, nem no mês e nem em todo aquele ano. Em 2009, o mesmo jornal noticiou a CPLP 6 vezes: 3 em janeiro e 3 em março. Em O Globo, temos 5 registros em 2000, sendo 2 em abril e 3 em julho. Essa concentração em alguns dias também ocorreu com uma significativa semelhança entre os jornais.
Ainda sobre os meses, o pico de frequência dos registros ocorreu em julho e isso tem explicação: aquele mês é o da institucionalização da CPLP e a maioria das atividades oficiais dessa entidade sempre foi realizada em julho, até como uma forma de lembrá-la. Isso ainda implicou em viagens dos presidentes brasileiros para participar das conferências e de outros eventos, atraindo a cobertura jornalística. E aqui está um traço marcante nas notícias sobre a CPLP no Brasil: a dependência do envolvimento direto dos presidentes.
Realizadas essas primeiras constatações sobre uma lusofonia invisível no Brasil, surgiram três dúvidas: 1) Será que outras organizações internacionais, similares à comunidade lusófona, receberam dos dois jornais o mesmo tratamento que a CPLP recebeu? 2) Será que houve algum esforço institucional do governo brasileiro para que essa comunidade fosse destacada, mas os dois jornais não quiseram noticiar? 3) Será que a CPLP não produziu nenhuma agenda, não se comunicou, o que dificultou a cobertura de suas ações pelos jornais brasileiros?
Esses questionamentos foram objeto de novas investigações e na próxima semana, nessa coluna, vamos responder a essas e outras questões sobre a invisibilização da comunidade lusófona no Brasil.