De forma breve, este ensaio procura explicar o percurso da conquista da cidadania em Portugal, entre o século XIX e final do século XX. Segundo Maria Isabel João (2013), a cidadania não é uma problemática de uma só face. Não se trata apenas do confronto ou do posicionamento dos indivíduos face ao poder político, mas também em relação à forma como as sociedades se organizam para garantir, defender e promover os seus direitos, deveres e garantias.
Um cidadão é, antes de mais, um indivíduo que usufrui de direitos civis e políticos no contexto de um determinado regime, geralmente livre e democrático. É no século XIX que se encontra a génese deste conceito e desta prática. O liberalismo foi a construção política responsável por colocar a tónica da governação no indivíduo, gerando uma base para a génese de uma sociedade civil organizada, assegurada por liberdades, direitos e deveres, todavia focada no estatuto censitário. Por esse motivo, o processo foi lento e, primeiro, beneficiou determinados grupos sociais, como a burguesia.
Essa emergência da organização civil denota-se através do associativismo livre através do surgimento de organizações e associações de índole política, que mais tarde derivaram em partidos. Depois, com outras voltadas para o apoio e desenvolvimento social ou económico (ex.: Associações de Socorros Mútuos, associações comerciais, industriais e agrícolas, cooperativas de bens de consumo). Releva-se ainda a existência de outras direcionadas para o desporto, a recreação e arte (filarmónicas, sociedades e clubes).
Entretanto, no século XX, com a implementação da 1ª República (1910) e a Constituição de 1911, o associativismo continuou a ser promovido e valorizado. Um passo importante nesse sentido foi o reconhecimento do direito à greve, a concessão de maior projecção às cooperativas, às mutualidades e às associações desportivas, recreativas e artísticas.
Contudo, entre a Primeira Guerra e o seu rescaldo, a agitação social e política fragmentaram a opinião pública e a coesão da sociedade civil, já de si fragilizada pelas dificuldades económicas, pelo baixo nível de urbanização, pela fraqueza das classes médias, pelas desigualdades, e pela elevada taxa de analfabetismo.
O nível de descontentamento social, aliado à crise da economia, promoveram a ascensão de um regime ditatorial e repressivo, o Estado Novo (1933-1974), momento em que a sociedade civil perdeu muito, se não quase toda, a expressão, representação e autonomia que vinha a adquirir desde 1822. A forma como tal sucedeu deveu-se à forte intervenção do Estado na economia e finanças, delegando para último lugar a iniciativa privada, assim destruindo o pioneirismo e o empreendedorismo. O primado das corporações governamentais restringia liberdades sindicais e grevistas dos trabalhadores, fragmentavam em sectores e regiões certas agremiações, ou encerravam-nas, conforme aconteceu com a CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores). Depois, com a ilegalização dos partidos, o regime mitigou a oposição, a liberdade de expressão e dirimiu o valor da opinião pública. Mesmo as políticas sociais e a promoção da taxa do alfabetismo, eram feitas com base numa doutrinação de valores conservadores e tradicionais.
Esta panóplia de fatores provocou atrasos de ordem socioeconómica e cultural na população que contribuíram para uma lenta evolução da cidadania e da cultura cívica. Foi a partir de 1976, dois anos depois do golpe militar, que os cidadãos retomam liberdades e garantias de que foram privados, e conquistam outras. Foi proclamado um Estado de direito democrático, visando o aprofundamento da participação dos cidadãos na vida política, económica, social e cultural, os partidos políticos revestem-se de maior representatividade e diversidade na Assembleia da República (de acordo com a expressão do seu eleitorado), foi instituído o sufrágio universal, sem descriminação censitária ou de género, é introduzido o mecanismo de referendo, certos aspectos ideológicos são suprimidos, as autarquias locais adquirem o estatuto de pessoas coletivas, com o intuito de melhor representarem os interesses das suas comunidades, e as assembleias do poder local passam a ser eleitas pelos seus cidadãos eleitores. Além de tudo foram ainda consignados um vasto conjunto de direitos socioeconómicos provenientes de uma conceção providencialista do Estado, nomeadamente o direito ao trabalho e os direitos dos trabalhadores, com obrigações específicas do Estado para a sua efetivação (art. 52º e 54º), o direito à greve e proibição do lockout, direito à segurança social, saúde, habitação, ambiente e qualidade de vida e o direito de todos à educação e à cultura. Estes princípios tiveram por objectivo garantir uma existência igualitária e livre, com garantias de dignidade e qualidade material.
Relativamente às garantias foi criado o provedor de justiça (inspirado no ombudsman dos países nórdicos), um mecanismo pelo qual os cidadãos podem apresentar queixa pelas ações e omissões dos poderes públicos.
Para concluir, reforça-se o alerta de todas as décadas, dado por várias figuras de vulto, personalidades, políticos, intelectuais, jornalistas, professores, assim como por tantos outros agentes do pensamento e da acção: a liberdade, a igualdade e a democracia não estão garantidas se não existir uma consciência permanentemente informada, crítica, justa e construtiva. É preciso compreender os defeitos do sistema democrático e saber melhorá-los, pacientemente, para que cada geração usufrua de novas vantagens, sustentáveis e acessíveis a todos.
Bibliografia
GODINHO, Vitorino Magalhães – Portugal – A Identidade Nacional. Ensaios e Estudos. Uma Maneira de Pensar. Lisboa: Sá da Costa Editora, Vol.I, (2009), pp. 71-89.
JOÃO, Maria Isabel – Traços constitucionais dos regimes e cidadania. [s/d.]. Documento pdf. Texto de apoio de História de Portugal Contemporâneo. 1º ciclo de História. Acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta. 2013.
Foto D.R. Disponível em: https://www.findlaw.com/immigration/citizenship/u-s-citizenship-naturalization-overview.html