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A colonialidade fascistoide

A colonialidade fascistoide

Esse texto é continuidade do último: Brasil, a espiral reatualizada da colonialidade. Nele, em resumo, dissemos que a elite brasileira conseguiu levar grande parte da sociedade a naturalizar, inclusive como virtude, práticas autoritárias, violentas, racistas. O ódio, por exemplo, transformou-se em expressão de “liberdade”.

Esse é um processo pedagógico violento, histórico e continuado, produzindo uma brasilidade nada cordial, pacífica, alegre. Grande parte de nós exerce cada vez mais nitidamente um ódio classista e racista, assentado em bases cristãs. Todavia, diante dessa e de outras contradições, rejeitamos a realidade.

A negação do que somos é parte central desse projeto da elite para o Brasil. Um dos modos de fuga do real é a natural carnavalização das nossas tragédias, das nossas profundas desigualdades, da destruição permanente do meio ambiente, do genocídio contra os pobres.

A submissão da maioria a essa catequese, com o cultivo de valores inumanos entre nós, produz a brasilidade como fantasia, onde não nos enxergamos como somos apenas, mas, também, invertemos a força da realidade que nos deixa nus. A tragédia cotidiana é tão dura que, talvez, isso implique nossa irrealidade.

Quem tem olho é rei

Nem todos somos assim. A elite nacional tem plena dimensão dessa realidade, o que possibilita manipular seu projeto e dar direção à sociedade. Fora disso, a classe média busca imitar os de cima, odeia os pobres, imagina-se rica. Os pobres se iludem, pensam ser classe média e execram os miseráveis. Esses últimos não se imaginam, são objetos de todo ódio.

Sim, grande parte de nós tem ódio do Outro, que será sempre pobre, negro, indígena, imaginado como inimigo, contra nós, amoral, criminoso nato. A tragédia brasileira é que a pedagogia elitista é tão eficaz que não permite que nos enxerguemos como esse Outro, contra quem despejamos ódios acumulados. De modo incontornável, o Outro somos nós mesmos.

Para “educar” a odiar uns aos outros, a classe dos poderosos no Brasil criou o Outro para nós, aquele que devemos desejar, invejar, ser nossa referência de imitação, em oposição a diferença que nos revela. O Outro para nós está fora de nós, é rico, branco, mora nos Estados Unidos.

Cria-se uma falsa disputa identitária. Na verdade, tem-se apenas um projeto, o da elite nacional e, ele, é amplamente vencedor e arrasador. É esse modelo classista, racista, autoritário, saqueador que conforma boa parte de nós como um povo violento e triste.

Longo fio de colonialidade

Essa derrota foi construída antes mesmo da invasão do Brasil no século XV e se arrasta hoje como um longo fio em forma de espiral, marcado por nós de colonialidade.

No Brasil, os passados não estão resolvidos entre nós. Eles não são fantasmas, mas realidades que emergem no presente, cobrando-nos um acerto de contas. Três rápidos exemplos disso: a escravização dos povos originários e dos africanos; o saque e a destruição permanente do meio ambiente; a violenta relação inumana de mando/obediência em nosso cotidiano.

Sim, a violência, o autoritarismo, o ódio classista e racista aos pobres e pretos, a exploração sem medida, tudo isso nos constitui desde à Colônia, a partir dos genocídios e escravização contra os povos originários e os negros africanos. Contudo, esse modo de se fabricar a nação foi muito bem tocado pela elite brasileiras no Império, consolidando-se na República.

As ideias e ações nazistas e fascistas europeias do século XX caíram como uma luva para a elite do Brasil, transformando-se em um vigoroso revivificar das relações colonialistas contra o Outro. O fascismo em terras brasileiras, de modo especial, ganhou status de fundamento para o projeto de uma sociedade nacional, reatualizando nossa espiral histórica violenta e racista.

Não copiamos o fascismo europeu, mas a classe dominante conseguiu extrair princípios basilares dele para animar a colonialidade em nossas relações. Esse é o projeto vencedor e em pleno exercício no Brasil. Seu grande sucesso está no fato de que ele se espraiou pelas estruturas nacionais e é reproduzido por todos nós como se fosse natural.

O colonialidade fascistoide desse projeto reafirma a violência, o autoritarismo, o racismo. Ele cultua a morte de pobres, negros, indígenas, lgbtqi+ e de imprestáveis ao sistema econômico. O atual governo brasileiro, de extrema-direita, por exemplo, representa com nitidez essa colonialidade fascistoide. Isso não significa dizer que governos anteriores não colaboraram com esse plano.

A guerra permanente

Nesse ponto, tomando-se por referência o texto Ur-Fascismo (2018), de Umberto Eco, podemos apontar indícios dos fundamentos fascistas em vigor no Brasil e que se mesclam com a pedagogia senhorial da barbárie promovida pela elite brasileira.

Um primeiro princípio é a fabricação e manutenção de uma guerra permanente, um constante conflito contra “nossos inimigos”. Para os poderosos, essa lógica é vital porque suscita ódio e medo, elementos de mobilização, adesão, ação violenta e controle sobre a sociedade civil. Guerra conta quem? Quais as ameaças que sofremos? Quem são os inimigos?

Guerra aqui não significa o conflito clássico entre nações, mas uma fábula a produzir constantes inimigos que ameaçam a propriedade, a família e deus. O falso moralismo é central porque a elite utiliza da crença imaginária para fabricar essa guerra e convoca a classe média e os pobres para a linha de frente. A “ira santa”, o medo e a violência mobilizam largos setores sociais para o permanente conflito, para a defesa moral, para as “guerras justas”.

Essas guerras imaginárias ganham realidade na medida em que atendem aos interesses políticos e econômicos da elite. O inimigo é o Outro que põe em risco nossa suposta moralidade cristã, racista, classista, capitalista. Esse Outro são os povos originários, os negros, os miseráveis de Canudos, os professores e trabalhadores que buscam se organizar, os pobres de todas as margens.

Como no fascismo clássico, na colonialidade fascistoide não é a paz e a solidariedade que mobiliza, mas o conflito, o ódio, a violência. Esse é o projeto político-identitário vencedor no Brasil e o amplo sucesso desse modo de pensar, ser e agir está no fato de que ele se espraia como consciência de mundo e de vida entre nós. Não é sem razão que grande parte da sociedade brasileira é estimulada a ter arma de fogo, a matar quem se aproximar da propriedade, ofender a deus e a moral da família.

A morte como gozo

Como na guerra, o primeiro sentimento motivador é o ódio e a consequência do conflito é a rendição, o controle, a derrota do inimigo. O gozo coletivo é a morte desse Outro. Com parece impossível eliminar milhões rapidamente, a guerra é uma constante, uma ação cotidiana de violência física, cultural, religiosa, econômica, política. Quando a morte se apresenta aos mais pobres, não há perda, dor, luto, tristeza, mas alívio e vitória.

A indiferença ativa e cúmplice de uma parte da sociedade diante do genocídio racista, da “guerra” contra jovens negros e pobres, contra indígenas, é parte do sucesso do projeto da elite no Brasil. Para outra parte da sociedade, mais nítida e publicamente fascistoide, a matança é limpeza, higienização, um modo de embranquecimento, um extermínio que se louva, principalmente, nas mídias socias.

No Brasil, de cada 100 pessoas assassinadas 76 são jovens negros. Para elite nacional, esse dado e as reações da sociedade, seja de indiferença seja de apoio direto, é uma prova incontestável da vitória do projeto de colonialidade fascistoide, mantendo-se intocadas as relações de mando/obediência, classistas e racistas.

Um exemplo concreto desse estado de colonalidade fascistoide entre nós: O governo Bolsonaro propõe gastar mais com a pasta da guerra, da Defesa, do que com Educação. O governo reservou 5,8 bilhões de reais a mais para 2021 para despesas com militares do que com a educação. No Brasil se libera armas e de taxa livros. Na reunião ministerial em 22 de abril passado, o presidente brasileiro afirmou: “eu quero que o povo se arme”. Para qual guerra estamos sendo armados? Aonde isso vai parar?

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Imagem gratuita em Pixabay (Free-Photos)

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6 respostas

  1. Parabéns pelo texto lúcido, provocativo e extremamente necessário nos dias de hoje!
    Ainda vai demorar muito tempo para que se compreenda um texto assim, ser cair em polarismos e reducionismos políticos.
    Obrigada.

    1. Obrigado Elane pelo comentário. Sim, precisamos nos enxergar como verdadeiramente somos e aí, quem sabe, puder sair do poço que cavamos com nossas mãos.

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