Como o preço dos ingressos de cinema está bastante caro hoje em dia, evanesceu-se uma prática outrora comum, que contribuía para a descoberta de situações magistralmente discursivas em filmes aparentemente comprometidos com a lógica hegemônica da criminalidade naturalizada: em Hollywood, a qualidade artística de seus produtos não é dissociada da potencial malevolência discursiva. São abundantes os casos de enredos racistas, misóginos e/ou direitistas que sustentam obras-primas da Sétima Arte. Mas acontece o inverso também: filmes considerados ruins que são ressignificados pela pujança atacante em relação ao ‘status quo’…
Quando as informações produtivas sobre “O Homem Invisível” (2020, de Leigh Whannell) passaram a ser divulgadas, houve uma sensação de fastio entre os críticos: “puxa, mais uma versão da clássica estória de H. G. Wells? O que há de novo para ser narrado?”. Para piorar, o currículo do diretor australiano responsável por esta regravação é composto por capítulos desgastados de franquias de terror contemporâneO. Não tinha como dar certo!
Após a estréia interacional do filme, entretanto, algo chamou mui positivamente a atenção: a protagonista de “O Homem Invisível” seria Elisabeth Moss, atriz hipercodificada em razão de suas participações em séries de TV em que o elã feminista sobressaía-se. As primeiras críticas sobre o filme foram bastante entusiásticas: é uma obra que enfatiza o desamparo de mulheres perseguidas pela opressão compulsiva de seus brutais companheiros masculinos. A curiosidade foi despertada. Mas… Será que vale a pena pagar caro para arriscar algo que pode ser apenas uma suspeita hermenêutica?
Sim, vale! Mesmo que “O Homem Invisível” não seja a obra revolucionária de terror hodierno que alguns apregoam, a total ruptura em relação à trama original é digna de nota mui elogiosa. Em verdade, exceto pelo título wellsiano, não há mais nada em comum com o enredo clássico: o que interessa ao diretor é denunciar a invisibilização das mulheres que denunciam agressões. O homem é invisível, porém onipresente; a mulher possui voz, mas é desacreditada. Para além de qualquer desaprovação do percurso narrativo vindouro, o pagamento de ingresso para esta sessão rende um urgente e necessário debate.
Enredisticamente, esta nova versão de “O Homem Invisível” aborda a toxicidade da relação matrimonial entre o cientista óptico Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen) e a arquiteta impedida de trabalhar Cecilia Kass (Elisabeth Moss). Logo na primeira seqüência, ela põe em prática um desesperado plano de fuga, a fim de escapar da luxuosa mansão que funciona como desagradabilíssima prisão domiciliar. Ela droga o marido, enquanto conta com o auxílio de uma amiga de infância para evadir-se. Mas é atormentada por uma devastadora Síndrome de Pânico: onde quer que esteja, Cecilia sente como se Adrian estivesse prestes a atacá-la, a agredi-la, a feri-la por dentro e por fora…
É nesse ponto que acontece a reviravolta que justifica o título de ficção científica da obra: Cecilia recebe a notícia de que seu esposo suicidara-se e que deixara-lhe uma herança monetária vultosa, estabelecendo a condição de que, caso ela fosse acusada de algum crime, perderia o direito à mesma. Cecilia reluta a princípio, descrê que Adrian esteja efetivamente morto, o que é acentuado depois que ela insiste que sente a presença dele ao seu redor, apavorando-a em diversos momentos. Cecilia clama que ele tornou-se invisível e permanece cerceando-a. É dada como louca, o que só piora depois que um assassinato é cometido. O restante, só vendo o filme.
Como se pode perceber neste preâmbulo sinóptico, o roteiro de “O Homem Invisível” inverte por completo a tônica das versões anteriores: noutros filmes, o protagonista é realmente o homem tornado invisível, que luta para recobrar a forma física, ao mesmo tempo em que lida com a perda da sanidade por conta das vantagens atribuídas ao poder em pauta; aqui, o que está em cena é a progressiva impotência – em termos sociais – de uma vítima duradoura do personagem-título, que é progressivamente desacreditada, por mais patentes que sejam as provas de vida emocional em frangalhos. Roteiristicamente, o filme é bastante equivocado, sobretudo em seu desfecho quiçá revanchista, mas ele instaura uma emergente necessidade de reagir ao que é apresentado enquanto evidência propositiva: será muito difícil encontrar uma mulher que não identifique-se com os diferentes tipos de violência enfrentados por Cecilia!
Não por acaso, a primeira semana em cartaz deste filme coincidiu-se com uma situação que tornou-se questão obrigatória de discussão, tendo em vista a sua repercussão dúbia: no último dia 28 de fevereiro de 2020, a despeito dos inúmeros protestos de feministas, o cineasta polonês Roman Polanski recebeu o prêmio de Melhor Diretor na cerimônia do César, considerado “o Oscar francês”. A revolta deve-se ao fato de este cineasta ser acusado de várias acusações de estupro, inclusive de menores. Inicialmente, ele compareceria à cerimônia, mas desistiu, alegando que não estava disposto a “enfrentar um tribunal de opinião autoproclamado disposto a pisotear os princípios do Estado de direito para que o irracional triunfe novamente”. Título original de seu laureado filme: ‘J’Accuse’. O debate está apenas começando…