O mundo assiste, com certo grau de impotência, a propagação da Covid-19. Com a ideia positivista do triunfo da ciência sobre a natureza, nos acostumamos a pensar na resolutividade e o relativo distanciamento das ondas epidêmicas, ou porque aconteciam de forma distante do nosso ‘reino’, ou porque a ciência trazia reposta rápida. A questão que se estabelece é que precisamos de uma resposta ultrarrápida já que o medo e a incerteza que se propagam, mostram que o risco em uma sociedade que imagina ter o ‘controle’ é real e insuportável.
Importantes teóricos da sociologia afirmam que vivemos em uma sociedade de risco que pode ser entendida pela falta de controle da produção do conhecimento especializado e pela desorientação ou reflexividade que essa falta de domínio provoca nas praticas sociais. Ulrich Beck, em seu clássico livro “Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade” já nos alerta que vivemos não mais exclusivamente focados em mudar de forma utilitária a natureza, ou tentando livrar a sociedade dos tradicionais riscos e contingencias, mas há uma grande preocupação com os resultados, muitas vezes sem transparência, do desenvolvimento técnico e econômico.
A chamada modernização deve ser analisada continuamente, porque se tomou arriscado confiar nela. Diz o autor “é certo que os riscos não são uma invenção moderna. Quem – como Colombo – saiu em busca de novas terras e continentes por descobrir assumiu riscos. Estes eram, porém, riscos pessoais, e não situações de ameaça global, como as que surgem por toda humanidade com a fissão nuclear ou com o acúmulo de lixo nuclear. A palavra “risco” tinha, no contexto daquela época, um tom de ousadia e aventura, e não a da possível autodestruição da vida na Terra”.
Outro autor importante da sociologia é Antony Giddens que também traz uma reflexão do que vem a ser o risco na chamada ‘alta modernidade’. Para ele estamos diante de uma consciência de existência de um lado sombrio da modernidade. Isso teria sido deixado de lado, de certa forma, pelos fundadores da sociologia clássica, Marx, Durkheim e Weber. Nestes três teóricos, para Giddens, a preocupação com as consequências da modernidade dentro dos limites do uso da racionalidade cientifica e dos danos ambientais resultados das práticas industriais não foram ressaltados.
Marx declarava uma superação das necessidades impostas pela natureza tomada a partir do aperfeiçoamento do uso da técnica, de tal maneira que o incremento da industrialização somente deveria libertar mais trabalhador. Durkheim defendia que a prosperidade da sociedade moderna era alcançável justamente através do industrialismo, se ampliada à solidariedade orgânica com cooperativas e associativismos. Weber desprezava a modernidade pelos seus aspectos racionalizantes e burocratizantes.
A modernidade é frequentemente caracterizada enquanto cobiça pela novidade. Na sociedade de risco, que é peculiar da modernidade não diz respeito ao novo em si, mas a suposição da reflexividade indiscriminada. Essa transformação das relações de confiança numa sociedade de risco se deve ao fato de que a intimidade deixou de ser tratada como espaço restrito as indeterminações e as subjetividades do ator social em seu contexto familiar, etc.
Essa indeterminação ganha um conteúdo científico próprio, com direito a definições estatísticas ou probabilísticas proporcionadas pelos estudos concebidos para determinar a vida íntima. Assim, por exemplo, as decisões sobre as melhores dietas, sobre os benefícios de determinados exercícios físicos, orientam a esfera da vida privada, de tal maneira que a melhor caracterização das nossas práticas sociais é a de que elas passaram a ser reflexivas, porque passamos a abandonar práticas tradicionais da própria modernidade.
Através da produção de riscos, as necessidades desprendem-se definitivamente de seu ancoramento residual na natureza e, portanto, de sua finitude e satisfazibilidade. A fome pode ser aplacada, as necessidades, satisfeitas; riscos são um “barril sem fundo de necessidades”, que não pode ser encerrado e nem esgotado. Diferente das necessidades, os riscos podem não apenas ser invocados (por meio da publicidade, etc.), prorrogados de modo a favorecer as vendas, em resumo: manipulados. Por meio de definições cambiantes de riscos, podem ser geradas necessidades inteiramente novas – e por decorrência, mercados inteiramente novos. Antes de tudo o mais, a necessidade de evitar o risco – aberta à interpretação, construível em termos causais, replicável ao infinito. Produção e consumo são levados, portanto, com a implementação da sociedade de risco, a um novo patamar. Em lugar das necessidades preestabelecidas e manipuláveis como marco referencial para a produção de mercadorias, entra em cena o risco autofabricável.
O risco seria, então, invariavelmente matematizado ou proporcionalizado de forma que o individuo possa sentir algum grau de segurança. Assim, quanto mais se desenvolve a sociedade de risco, mais cresce o número de pessoas que são afetadas por esse risco. A lógica da produção de riqueza incorporou o risco. Ulrich Beck também destaca a importância social e econômica do saber sobre os riscos e perigos divulgados através dos veículos de comunicação para essa lógica de produção. Prova maior é que governo e comunidade científica fixam níveis aceitáveis de risco e todos baseiam suas vidas a partir dai. Contudo, o controle institucional sobre o risco também foge aos limites do Estado. Estamos vivendo isso agora na prática, infelizmente!
Referências
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo, Editora 34, 2011.
GIDDENS, Antony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1990.