Resenha de livro: O’Donovan Jr., Wilbur. Cristianismo bíblico na África moderna. Lichinga (Moçambique): SIM / Nexo, 2013, 264p.
Wilbur O’Donovan Jr. (1935-2011) foi um teólogo e missionário norte-americano que atuou, por muitos anos, no continente africano. Ele estudou na Columbia International University (CIU) e atuou na Missão SIM, ambas instituições ligadas aos círculos evangélicos fundamentalistas dos EUA. Por isso, assim como diversos membros destes círculos, ele defendeu o chamado “cristianismo bíblico”. Em 2013, seu livro Biblical Christianity in Modern Africa, que originalmente foi publicado em 2000, ganhou esta tradução em língua portuguesa.
Este livro de O’Donovan apresenta uma visão extremamente redutora e preconceituosa do continente africano como um todo, das culturas africanas e dos próprios cristãos africanos. Não sei como um missionário que atuou tantos anos no continente africano, que lecionou para muitos cristãos africanos, foi capaz de produzir algo tão abjeto. Por isso, acredito que não vale a pena expor todo o conteúdo do livro, mas apenas levantar algumas questões para a reflexão dos indivíduos ou grupos africanos e afrodiaspóricos, principalmente os cristãos.
O argumento principal é de que há um “padrão cultural” no continente africano que leva todos os africanos a terem um interesse maior pelo mundo espiritual e optarem por explicações mágicas para diversos fatos (p. 15); que há crenças e práticas religiosas “tradicionais” que oprimem todos os africanos, incluindo os cristãos (pp. 43, 179, 190, 225); e que há um “tribalismo” difundido que constitui uma grande maldição sem precedentes que está sobre todos os africanos (pp. 35, 73, 165, 213-238). Este argumento está presente em todos os doze capítulos do livro e, para O’Donovan, explica praticamente tudo. Desde a pobreza, a corrupção das elites políticas, a incidência de AIDS, o êxodo rural e a criminalidade nas cidades, o desemprego, a circuncisão feminina, os dotes de casamento, a taxa de natalidade, a desvalorização das mulheres, e até mesmo alguma suposta falta de pontualidade dos africanos; ele sugere que tudo isto que ocorre no continente africano é de alguma forma consequência do tal “padrão cultural”, das práticas religiosas “tradicionais” e do “tribalismo”.
A perspectiva de O’Donovan neste livro é etnocêntrica e ocidentocêntrica, simplesmente porque busca responder questões propostas por ele mesmo e não questões propostas pelos africanos ou em diálogo com eles, nem mesmo as respostas são construídas em diálogo com os africanos. O’Donovan em diversos momentos inclui os africanos como causadores dos problemas do continente, mas em nenhuma parte do livro cogita que os africanos, por si só, podem encontrar soluções criativas e inovadoras para seus próprios problemas. A intenção de O’Donovan é oferecer receitas e respostas prontas (p. 156). E pior que isto, sua leviandade chega ao ponto de não cogitar que muitos problemas do continente africano foram causados ou agravados pelos interesses ocidentais e que os missionários ocidentais também podem ser parte destes problemas.
E o que O’Donovan diz sobre o cristianismo africano? É muito triste ver como o cristianismo africano foi totalmente desqualificado no livro, porque não seria um “cristianismo bíblico”, e foi retratado de forma extremamente negativa por O’Donovan. Ele afirmou categoricamente: “Há muito que se aceita que o cristianismo em África, atualmente, não é um cristianismo bíblico” (p. 207). Além disso, o livro está recheado de exemplos supostamente negativos do cristianismo africano: crentes que supostamente não prezam pela pontualidade (p. 1), crentes que supostamente são mundanos e idolatram as coisas materiais (p. 11), crentes que supostamente caem na imoralidade (p. 74), líderes cristãos que supostamente amam o dinheiro (p. 115), líderes cristãos supostamente arrogantes (p. 169), crentes que se casam com pessoas não-cristãs (p. 180), crentes que adotam práticas carismáticas ou pentecostais (p. 201), líderes cristãos supostamente gananciosos (p. 212), e igrejas cristãs com manifestações espirituais supostamente reprováveis (p. 233), entre outros.
O’Donovan atuou por muitos anos no continente africano e ainda assim produziu uma obra caracterizada por grande insensibilidade cultural. Ele simplesmente não apontou nada de positivo no cristianismo africano. Por que ele deliberadamente ignorou todas as teologias africanas? Será que o chamado “cristianismo bíblico” não pode aprender nada com os cristãos africanos e com as teologias africanas? O’Donovan já não está entre nós, mas cada vez que visito uma igreja africana ou tenho comunhão com irmãos e irmãs africanas, ou mesmo quando leio algum texto de teologia africana, constato que ele estava tremendamente errado.
Referências:
Fiorotti, S. Os defensores das missões evangélicas e sua incapacidade crítica. In: Novos Diálogos, Rio de Janeiro, 08 set. 2015.
O’Donovan Jr., W. O cristianismo bíblico da perspectiva africana. São Paulo: Shedd Publicações, 1999.
O’Donovan Jr., W. Biblical Christianity in Modern Africa. Cumbria: Paternoster Press, 2000. [Edição moçambicana: SIM / Nexo, 2013]