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Quando a Ilha Acelera: O Rali Vinho da Madeira como Espelho de Identidade, Desenvolvimento e Emoção Coletiva

Quando a Ilha Acelera: O Rali Vinho da Madeira como Espelho de Identidade, Desenvolvimento e Emoção Coletiva

Introdução

O início da 66.ª edição do Rali Vinho da Madeira, a 31 de julho de 2025, ultrapassa largamente o âmbito desportivo. Representa o reencontro anual de uma ilha com a sua própria pulsação emocional, cultural e identitária. Assistimos não apenas a uma prova automobilística, mas a uma manifestação simbólica de pertença, orgulho regional e expressão coletiva. Com 97 equipas inscritas, mais do que em qualquer edição anterior (Clube Sports da Madeira, 2025), o evento reafirma a Madeira como um palco europeu de excelência. Mais do que celebrar o rali como um acontecimento, este artigo propõe pensá-lo como um espelho vivo da Madeira — onde convivem passado, presente e futuro.

Desde 1959, o rali foi ganhando um lugar central na memória coletiva da ilha. A sua força simbólica reside menos nos troféus e mais nas imagens partilhadas entre gerações: famílias nas bermas, crianças em ombros, e o eco dos motores entre as montanhas. Como defende Giddens (2021), são os eventos recorrentes com densidade simbólica que forjam o sentimento de identidade coletiva. O rali é, neste sentido, um ritual moderno que encena, ano após ano, o orgulho insular. A minha perceção, enquanto observador atento e madeirense, é que este evento vai muito além da velocidade: ele traduz um grito silencioso de afirmação perante o continente, e perante o mundo.

É inegável o impacto económico do rali. Segundo o Governo Regional da Madeira (2025), o evento gerou mais de 7 milhões de euros em receitas diretas e indiretas — um contributo substancial, especialmente fora da época balnear. No entanto, limitar o valor do rali ao campo económico seria uma leitura redutora. O verdadeiro capital do evento reside na sua capacidade de transformar a ilha num palco de emoções, de autenticidade e de espetáculo vivo. Os troços atravessam paisagens emblemáticas como o Rosário ou o Palheiro Ferreiro, proporcionando ao visitante uma experiência sensorial única — como referem Pine e Gilmore (2020), é o turismo experiencial que cria memórias duradouras, não os pacotes estandardizados.

Na minha opinião, o grande mérito do rali é conseguir ativar o território — dar-lhe corpo, som e emoção. O turismo não se resume a visitas: ele exige narrativas. E o rali oferece-as em abundância. Ao mesmo tempo, a emoção coletiva gerada durante o evento não é apenas entretenimento, é coesão social. Damásio (2023) afirma que a emoção partilhada reforça vínculos afetivos e bem-estar psicológico. O rali atua, por isso, como um gesto terapêutico, num tempo em que o isolamento e a crise climática tornam cada encontro público um ato de resistência cultural.

Importa também destacar o papel formativo do rali junto das novas gerações. Em 2025, a edição contou com a participação de jovens pilotos como Miguel Nunes e Alexandre Camacho, símbolos de uma nova vaga de talento insular (Autosport, 2025). Esta projeção motiva vocações na área da mecânica automóvel, da engenharia e da comunicação. De acordo com dados da Direção Regional de Educação (2024), há um aumento nas matrículas nos cursos técnicos ligados ao desporto automóvel, motivado pelo exemplo destes atletas. O rali é, portanto, um espelho onde a juventude vê-se e projeta.

No entanto, nem tudo são vitórias. O rali, como qualquer megaevento, levanta questões de sustentabilidade. O ruído, as emissões de carbono e o impacto no ecossistema insular são reais. Reconheço que a organização tem dado passos importantes: veículos elétricos de apoio, campanhas de recolha seletiva de resíduos e parcerias com entidades ambientais (Rali da Madeira, 2025). Mas estes esforços, embora meritórios, ainda são insuficientes para garantir uma neutralidade climática de longo prazo. Num tempo de emergência ambiental, é necessário que o rali transforme-se também num exemplo de inovação ecológica, alinhado com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (2024).

Outro ponto de crítica é a falta de visibilidade mediática a nível nacional. Apesar da sua importância regional e projeção internacional, o rali continua marginalizado nos grandes canais portugueses. Esta ausência revela uma persistente centralização lisboeta e a dificuldade em reconhecer eventos periféricos como parte da identidade nacional. Como sublinha Castells (2022), as regiões só se tornam visíveis quando conseguem inscrever a sua narrativa nos meios que moldam a opinião pública. É imperioso, portanto, que o rali seja assumido como embaixador cultural da Madeira.

Há também um caminho a percorrer na área da inclusão. A escassa participação feminina como pilotos, comissárias ou técnicas revela uma estrutura ainda dominada por estereótipos de género. Acredito que uma mudança neste campo pode não apenas alargar o universo do rali, mas também torná-lo mais representativo da diversidade madeirense. Além disto, é fundamental melhorar o acesso de pessoas com mobilidade reduzida aos locais de prova e às infraestruturas do evento — a inclusão não pode ser apenas simbólica.

A realização do rali é, a meu ver, um ato de soberania cultural. A Madeira, enquanto região ultraperiférica, encontra neste evento uma ferramenta diplomática para afirmar-se perante o mundo. Não somos apenas uma ilha de paisagens exóticas: somos um território com capacidade organizativa, talento local e ambição internacional. A projeção do rali através de plataformas como o STREAMadeira reforça esta vocação global, permitindo à Madeira ser não apenas destino, mas produtora de narrativas.

Num tempo em que muitas comunidades procuram formas de reconectar-se com a sua identidade, o rali oferece à Madeira um ponto de encontro intergeracional, multissensorial e profundamente afetivo. Cada troço é uma afirmação. Cada curva, uma memória. E cada aceleração, um impulso para o futuro. Para mim, que vivi este evento na infância e agora o observo com um olhar crítico e académico, o rali é um património vivo que precisa ser cuidado, valorizado e transformado — sem o descaracterizar.

Conclusão

O Rali Vinho da Madeira não é apenas um evento automóvel. É uma celebração coletiva, um motor de desenvolvimento sustentável e uma afirmação de identidade num arquipélago que recusa o esquecimento. O seu valor vai muito além da competição: ele reside na emoção partilhada, no talento local e na capacidade de transformar a paisagem em palco. Como madeirense e investigadora, considero que o rali deve ser reconhecido como património imaterial e como estratégia de projeção cultural e económica da ilha.

Contudo, este reconhecimento exige responsabilidade: ambiental, inclusiva e comunicacional. O futuro do rali passará pela sua capacidade de reinventar-se sem perder alma — acelerando com consciência e guiando com visão. Quando os motores rugem entre levadas e penhascos, o coração da ilha pulsa com mais força. E isso, mais do que vitória, é pertença.

Referências Bibliográficas

Autosport. (2025). Rali da Madeira: Luta totalmente aberta à geral e no CPR. https://www.autosport.pt

Bauman, Z. (2013). Community: Seeking Safety in an Insecure World. Polity Press.

Castells, M. (2022). A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Fundação Calouste Gulbenkian.

Clube Sports da Madeira. (2025). Lista Oficial de Inscritos no Rali Vinho da Madeira 2025. https://www.ralidamadeira.com

Damásio, A. (2023). Sentir e Saber: O Cérebro e a Experiência Humana. Temas e Debates.

Direção Regional de Educação. (2024). Educação, Desporto e Cidadania: Relatório Anual. Governo Regional da Madeira.

FPAK – Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting. (2024). Histórico do Rali Vinho da Madeira. https://www.fpalk.pt

Giddens, A. (2021). Modernidade e Identidade Pessoal. Zahar.

Governo Regional da Madeira. (2025). Plano Estratégico para o Turismo e Eventos 2025–2029. Funchal: Secretaria Regional de Turismo e Cultura.

Pine, J., & Gilmore, J. (2020). The Experience Economy. Harvard Business Review Press.

Rali da Madeira. (2025). Plano de Sustentabilidade Ambiental 2025. https://www.ralidamadeira.com

United Nations. (2024). Sustainable Development Goals. https://sdgs.un.org/goals

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