

O pronunciamento militar de 24 de agosto de 1820, na cidade do Porto (Meirelles, 2015), impulsionado por uma burguesia descontente, alguma da qual, agremiada em “sociedades secretas” e corporações, legitimadas pelas novas teorias políticas, emancipadas dos salões filosóficos do último quartel do século XVIII, procuraram afirmar a justificação da luta pelo poder, no facto deste dever residir no povo (ou na Nação) fonte única da soberania (Bonifácio, 2010).
Ironicamente, foram os despotismos políticos do século XVIII a potenciar e patrocinar as Luzes filosóficas, que estariam na génese da queda desses próprios regimes absolutistas. A Época Pombalina, constitui, por definição, o momento de manifestação das Luzes em Portugal (Abreu, 2020, citando Mendes et al. 1998) traduzindo o espírito iluminista do Marquês, materializado na modernização das instituições do Estado, na reforma das universidades – génese da secularização e laicização do ensino e das instituições – e da sociedade, nomeadamente pela expulsão da Companhia de Jesus, findando o monopólio e hegemonia da Igreja na doutrinação das elites.
Além de reconhecer a importância da reorganização do ensino, contribuindo decisivamente para a formação de novas elites (não apenas de nobres) o novo paradigma veio confirmar o potencial de uma nova burguesia emancipada. O novo ordenamento urbanístico da cidade de Lisboa, possibilitou uma nova ordenação social, quer do espaço urbano, quer da própria sociedade, embora persistindo na manutenção das matrizes estéticas do despotismo iluminista (Abreu, 2020, citando Mattoso, 1993). Por cá, o grosso da aristocracia titular – umas cinquenta famílias adstritas à corte e dependentes da Coroa – manteve-se alheio ao movimento intelectual (Bonifácio, 2010).
Como refere Abreu (2020), citando Santos (2017) a partir de Oliveira Marques (1998), “os filósofos do século XVIII acreditavam e defendiam que o valor da Razão iria conduzir, encaminhar e iluminar o pensamento e a ação do Homem, de forma a modificar o sistema da sociedade do Antigo Regime”. Para a difusão das ideias e pensamentos iluministas, muito contribuiu uma “nova” instituição, recentemente ordenada, a Maçonaria, como a conhecemos, já organizada num sentido Moderno. Habilmente, esta organização, talvez em prol da defesa de uma nova hegemonia, que garantisse os interesses da nova classe burguesa e liberal, perpetuou uma luta ideológica – depois armada – contra as instituições do Antigo Regime, a Monarquia e a Igreja Católica.
A influência da Maçonaria – organização secreta que soube acolher as elites perseguidas historicamente pelo Antigo Regime, nomeadamente os protestantes e os judeus – adquiriu um papel fundamental na esfera social e cultural portuguesa. Na perspetiva de Abreu (2020), citando Santos (2017) e Oliveira Marques (2006), entre 1789 e 1799, quando a revolução rebentou, a Maçonaria foi bastante importante no desenvolvimento dos ideais revolucionários e na defesa dos princípios da liberdade, tolerância e igualdade, transformações estas que conduziram à passagem da sociedade do Antigo Regime para a adoção de um novo sistema liberal, parlamentarista.
Para compreendermos as razões da queda do Absolutismo em Portugal é preciso recuar ao tempo das invasões francesas e à fuga do rei e da corte para o Brasil e à consequente deslegitimação moral deste reinar. A mudança tinha vindo de fora, trazida pelas invasões francesas (Bonifácio, 2010 cit. Valente, 2009). Foram elas que vieram a criar as circunstâncias internas, que aliadas ao contágio internacional e peninsular, conduziram em 1820 ao derrube da monarquia do antigo regime (Bonifácio, 2010).
Com a “fuga do rei” o “paternalismo” régio caía por terra e com ele o Direito Divino de Reinar (Bonifácio, 2010), antevendo o pronunciamento liberal e a jura (e submissão) do rei à Constituição. Abreu, (2020) citando Mattoso (1993) refere que, a Revolução Liberal de 1820 foi um reflexo e uma consequência, a longo prazo, da Revolução Francesa e das três invasões napoleónicas, que originou a formação de uma nova consciência por parte dos portugueses, acompanhados por “um sentimento nacionalista que veio culminar com a revolução”.
Na sequência das revoluções liberais de 24 de agosto (Porto) e 15 de setembro (Lisboa) em 1820, a Nação Portuguesa reunir-se-ia novamente em cortes em 1821 – desde as últimas convocadas por D. Pedro II, em 1697-98 – desta vez, não à maneira do Antigo Regime, como habitualmente eram reunidas em “Três Estados”. As cortes passariam a ser representativas de toda a Nação Portuguesa, justificadas no princípio da Igualdade, decorrente da eleição por sufrágio quase universal, numa tentativa experimental de uma democracia representativa num sentido Moderno e a instauração de uma nova ordem constitucional liberal em Portugal, de matriz parlamentar (Moreira & Domingues, 2018).
Segundo Hespanha (2004) “na organização do sistema político tripartido, o poder legislativo foi confiado a uma única câmara, a Câmara dos Deputados”, eleita por sufrágio, não universal, uma vez que a capacidade eleitoral estava reservada apenas a “todos os cidadãos masculinos maiores de 25 anos (…) e excluía-se os criados e os membros do clero regular” (Hespanha, 2004; Moreira & Domingues, 2018; Ramos, 1994).
As alterações ao paradigma do Direito e a nova organização das estruturas políticas do reino, teriam assim por base as novas correntes do pensamento filosófico, saídas da revolução Francesa, nomeadamente, com o “Contrato Social” (1762) de Rousseau (1985), que “concebia o poder como um contrato entre governantes e governados, que viam naqueles uma espécie de delegados destes”. Este modelo, colocava em causa a relação de interdependência entre a antiga suserania e os seus súbditos, que durava desde a época feudo-medieval.
De notar, por diferentes razões, as claras influências em Portugal, dos liberalismos Inglês e Francês, quer pelas fortes relações comerciais com Inglaterra – nomeadamente no comércio do Vinho do Porto e do Vinho Madeira e dos lanifícios, além da forte exposição da dívida do reino a Inglaterra – quer no caso Francês, pelos partidários de Napoleão em Portugal. De referir que, por ambos casos, vimos o progressivo estabelecimento e abertura das primeiras lojas maçónicas em Portugal, que muito vieram a contribuir para a difusão do pensamento livre e dos novos ideais pós-revolucionários, em clara rutura com o Antigo Regime.
Das novas agremiações em Portugal, de profissionais liberais (advogados, médicos, jornalistas, entre outros) nascidos das “Luzes” europeias e da nova geração de “estrangeirados”, saíram os primeiros protagonistas e ideólogos do Liberalismo, em Portugal. O tenente-general Gomes Freire de Andrade (Grão-mestre da Maçonaria Portuguesa, com a criação do Grande Oriente Lusitano) conjuntamente com mais onze conjurados, entre os quais Manuel Monteiro de Carvalho, José Campelo de Miranda e José da Fonseca Neves, viriam a ser acusados e condenados em 1817 por “conspiração e traição à pátria”, por alegadamente conspirarem contra a “regência” do Marechal Beresford. O sacrifício dos “Mártires da Pátria” – termo sucessivamente utilizado ao longo de toda a historiografia Portuguesa – serviria de justificação para a revolução de 1820.
Assim, vemos que, como refere Abreu (2020) a partir de Ramos et al. (2009) a revolta Liberal foi resultado da ausência do marechal Beresford que partiu para o Brasil, a fim de solicitar o reforço dos poderes para a “sua Regência”, propiciando que o Sinédrio, associação secreta, cujos membros que a compunham – na sua maioria eram profissionais liberais, comerciantes, militares e alguns proprietários burgueses, pertencentes à Maçonaria, recém organizada em Portugal – desenvolvessem a conspiração.
As revoluções de 24 de Agosto de 1820 (no Porto) e a de 15 de Setembro (em Lisboa), tiveram como justificações os seguintes antecedentes:
Primeiro, aconteceram as invasões napoleónicas e a guerra peninsular, que deixaram o país ao “saque” (por parte das tropas estrangeiras, invasores e aliados, como também das tropas nacionais, desprovidas de “soldo” há vários meses).
Segundo, porque a Rainha D. Maria I, o Príncipe-Regente D. João (futuro rei D. João VI) e a corte régia, “abandonam” o país embarcando para o Brasil – conseguem partir em 29 de Novembro de 1807 – levando à perda da autoridade moral da Monarquia, perante os seus súbditos e vassalos.
Terceiro, porque a dominação inglesa, posterior à derrota das forças Napoleónicas e à assinatura da “Paz”, colocou os Ingleses na chefia do exército português e nos principais cargos político-administrativos do reino, levando ao descontentamento das elites portuguesas.
Quarto, porque a burguesia da metrópole que progressivamente, desde o final do século XIV e seguintes, tinha vindo a emancipar-se tendo ganho protagonismo social e influência política, desenvolvendo fortes monopólios económicos, confrontava-se com o agravamento fiscal e perdas de rendimentos simultâneas, por via do colapso do comércio triangular e das políticas mercantilistas e protecionistas da produção nacional, confrontando-se com a concorrência internacional, nomeadamente pela abertura dos portos brasileiros às potências internacionais e à introdução de alguma indústria manufatureira no Brasil – medidas tomadas por D. João VI, que contribuíram para o desagrado generalizado da burguesia empresarial portuguesa, que permanece na metrópole.
Em 1808, as hesitações de Portugal em cumprir o “bloqueio continental” potenciam as invasões Francesas e a consequente fuga da família real e da corte portuguesa, que abandonaria o país e refugiar-se-ia no Brasil, deixaram vazios os cofres públicos.
A consequente abertura dos portos brasileiros a outras nações – pondo fim ao monopólio comercial Português – em 1808, muito contribuiu para o agravar da situação económica e financeira do reino, secundarizando-o nas negociações e trocas comerciais realizadas no território brasileiro.
Poderemos então concluir, que as invasões napoleónicas e a fuga da corte portuguesa para o Brasil, muito contribuíram, não só para o colapso do paradigma económico do antigo regime, como também para o estabelecimento de um novo paradigma, o liberalismo económico, de matriz fisiocrática e livre-cambista – na conceção inglesa – mas que, nunca se irá desenvolver em pleno em Portugal, por razão do estabelecimento dos novos monopólios económicos na segunda a partir da segunda metade do século XIX.
Em 1820, na sequência da revolução, assistir-se-ia à formação de um novo governo (Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, governo interino), uma nova regência e a eleição das primeiras cortes constituintes. As cortes eleitas em janeiro de 1821, colocariam termo à Junta provisional e procederam à eleição de um governo e de um Regente (presidida pelo Conde de Sampaio) para reger o reino na ausência de D. João VI e exigiram o regresso deste, “chamaram-no” para jurar a bases da futura Constituição (1822).
Nesta experiência constitucional – mais radical que a Carta Constitucional, outorgada por D. Pedro IV, em 1826 – segundo refere Abreu (2020) a partir de (Moreira & Domingues, 2018) “apesar da característica progressista que tanto representou este Regime Liberal, a adoção do novo sistema político não concedeu qualquer privilégio às classes altas e passou a submeter o poder real à supremacia do poder executivo.” O que levou ao descontentamento das elites do Antigo Regime, nomeadamente da alta nobreza e eclesiásticos – partidários do Infante D. Miguel e de sua mãe D. Carlota Joaquina – que patrocinaram sucessivos golpes militares, levando-os, inclusive ao exílio e depois à Guerra Civil que opôs Absolutistas e Liberais (1828-1834).
“O fim da guerra civil não significou estabilidade” (Oliveira Marques, 1991, 2006) acentuou as desigualdades e a reintegração dos absolutistas na família política só contribuiu para piorar a situação – a manutenção de um novo “status quo” político – no qual, “a maioria dos governantes tendia para uma ditadura disfarçada, perpetuando um conflito quase permanente com as cortes” (Oliveira Marques, 2006), fazendo depender fortemente os governos da confiança política e vontade régia, uma vez que o poder moderador reservado ao rei, fazia dele um real interventor na decisão política e partidária, fazendo depender dele a nomeação e demissão dos governos, muitas das vezes, cujas quedas eram mais devidas a golpes militares, do que à alternância por eleições livres e democráticas.
REFERÊNCIAS
Abreu, V. (2020). A Monarquia Constitucional. Instituto Superior de Administração e Línguas, Curso Superior de Turismo. Funchal: Instituto Superior de Administração e Línguas.
Bonifácio, M. F. (2010). A Monarquia Constitucional 1807-1910. Lisboa: Texto Editores.
Hespanha, A. M. (1994) “As Vésperas de Leviathan – Instituições e Poder Político em Portugal”, Séc. XVII, Coimbra: Almedina
Hespanha, A. M. (2004) “Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e Lei no liberalismo monárquico português”, Coimbra: Almedina. ISBN: 9789724023212
Marques, A. H. de Oliveira (org.) “Portugal da Monarquia para a República,1900-1930” in Joel Serrão e Oliveira Marques (1991) Nova História de Portugal. Lisboa: Presença, vol. XI
Marques, A. H. de Oliveira (2006). “Breve História de Portugal”. 6ª edição. Lisboa: Presença.
Mattoso, José (Dir.) (1993), “História de Portugal”, 9 Vols., s/l, Lisboa: Círculo de Leitores, Vol. 5
Meirelles, J.G. (2015). Revolução do Porto e a volta da Família Real para Portugal. In: A família real no Brasil: política e cotidiano (1808-1821) [online]. São Bernardo do Campo: Editora UFABC. pp.55-77. ISBN: 978-85-68576-96-0. https://doi.org/10.7476/9788568576960.0005.
Moreira, V. & Domingues, J. (2018). Os projetos da Constituição portuguesa de 1822: relatórios do 3.º ciclo de estudos em direito. Lisboa: Universidade Lusíada Editora
Ramos, Rui (1994) A Segunda Fundação (1890-1926) in Mattoso, José (1994) “História de Portugal”, Vol. VI, Lisboa: Círculo de Leitores
Ramos, R. (coord.); Sousa, B. V.; Monteiro, N. (2009). “História de Portugal”, Lisboa: A Esfera dos Livros
Rousseau, J. (1985) «Du Contract Social ou Principes du Droit Politique» in Oeuvres Complètes, vol. III. Paris: Éditions Gallimard.
Santos, J. (2017) O Impacto da Revolução Francesa na Historiografia Portuguesa Oitocentista: uma perspectiva comparada – Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História Contemporânea. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa