Em “Problemas no Paraíso: Parte 1”, publicado em setembro, utilizou-se a experiência de uma viagem a Tonga para se discorrer sobre as contradições nas sociedades desenvolvidas, tendo-se suportado o argumento com exemplos retirados de O Papalagui. O leitor atento terá percebido que, não obstante o texto versar sobre esse país da Polinésia, na verdade a mensagem evidenciou alguns dos dilemas básicos do cotidiano nas sociedades hodiernas.
Esta segunda composição aprofunda a reflexão, realçando as semelhanças entre Tonga e outros povos. Limita-se o exercício de comparação a três exemplos, e no final expõem-se algumas cogitações sobre a conceção humana do meio envolvente.
Os habitantes de Tonga são grandes; muito grandes! De facto, o país é o 2º no mundo com mais pessoas obesas (fonte: World Population Review), com outras nações da região a figurar nos 10 primeiros: Nauru (1º), Samoa, Kiribati, Palau… O padrão é dado pelos próprios governantes: Taufa’ahau Tupou IV foi rei entre 1965 e 2006, e figura no Guiness como o monarca mais pesado da história, com um registo de 208 quilos. Mas nem sempre foi assim. Apesar de se acreditar que a robusta compleição física dos povos do Pacífico derivar de um misto de fatores que incluem a alimentação nativa, a genética, e a cultura, são as mudanças recentes nos estilos de vida e de alimentação que parecem explicar o atual desgoverno nutricional. Um artigo online da BBC News de 2016 reporta que na nova dieta dos tonganeses fazem parte iguarias como carne com elevado teor de gordura, snacks e aperitivos, comida processada e enlatada, e refrigerantes. Em pouco mais de duas décadas, o país registou um aumento da incidência da diabetes tipo 2, com as consequências associadas: doenças cardiovasculares e respiratórias, amputações, e redução da esperança média de vida (de 72 para 67 anos, entre 2012 e 2018).
A exploração intensiva dos recursos naturais e a poluição são outros problemas em crescendo. As florestas nativas têm sido delapidadas, para alimentar a indústria da madeira e a agricultura, e criar espaço para construção. A pesca também tem atingido níveis elevados, e a deslocação individual parece fazer-se quase exclusivamente por meio do automóvel. Os resultados destas e de outras ações incluem poluição da água para consumo, destruição dos sistemas de coral e das zonas costeiras, e declínio da fauna e flora autóctone. E se as linhas anteriores foram escritas com base em informação publicamente disponível, nada pode ser mais depressivo do que observar vastas quantidades de lixo espalhado pelas praias desertas e pelas bermas das rodovias. Garrafas de plástico e de vidro, latas, pilhas, roupa, e outros despojos humanos podem agora ser encontrados em abundância ao lado de conchas, palmeiras, e recifes.
Em novembro de 2006 a capital Nuku’alofa foi tomada de assalto por uma multidão em fúria, que incendiou edifícios públicos, bancos, restaurantes, lojas de comércio e carros. O final da revolta chegou com a intervenção de militares australianos e neozelandeses. Entretanto, 6 pessoas haviam perdido a vida, e 80% do centro da cidade estava em chamas. As explicações para o sucedido variam entre aqueles que culparam a juventude alcoolizada, e os que apontaram uma classe neo-liberal apoiada por potências estrangeiras, que entrou em rota de colisão com o sistema feudal monárquico de Tupou IV, cujas promessas de introduzir mais democracia no país nunca haviam sido cumpridas. Trata-se de um déjà vu: grupos económicos nacionais e estrangeiros interagem ou colidem com os atores político-sociais, para reproduzir um modelo de crescimento sobejamente conhecido.
Os parágrafos anteriores podem parecer indiciar um proselitismo anti-sistema, mas deve asseverar-se que não é o caso. Se o leitor investigar um pouco da história de Tonga e dos seus vizinhos do Pacífico, aprenderá quão pouco pacíficos foram estes territórios até à chegada do papalagui, no Século XVI. Até ao Século XX houve relatos de guerras tribais que envolviam atos de canibalismo e escravidão. O Haka māori e o Sipi tau tonganês são originalmente danças de guerra, e apenas recentemente surgem como enfeite no início de jogos entre as seleções de râguebi da Nova Zelândia e de Tonga. O progresso dos tonganeses é um facto incontestável.
Então qual a mensagem deste artigo? Antes de levantar o véu, tome-se um último exemplo.
A 6600 quilómetros de Tonga, a Ilha da Páscoa deslumbra devido às 887 estátuas gigantes, fabricadas entre os anos de 1250 e 1500. O mistério da origem das moai manteve-se até meados do Século XX, quando o etnógrafo norueguês Heyerdahl propôs que na construção e transporte dos monólitos foram utilizadas grandes quantidades de madeira, que desencadeou uma reação em cadeia: desflorestação da ilha, esgotamento de madeira usada no fabrico de canoas para a pesca, fome, e guerras por recursos. Dos 15 mil habitantes no Século XIII, Rapa Nui apresentou-se ao navegador holandês Roggeveen que a descobriu e rebatizou no dia 5 de abril em 1722 (Domingo de Páscoa), com pouco mais de 2 mil almas. A teoria do ecocídio seguido do declínio civilizacional é apenas uma das explicações teóricas para o sucedido, havendo visões menos sinistras.
Tonga está longe de ter o mesmo destino de Rapa Nui, mas o modo como o ser humano olha para o seu meio envolvente é assustadoramente semelhante. E parece ser largamente independente de variáveis coletivas, como a cultura e a religião, o modelo e o nível de desenvolvimento económico, o sistema social e político, as contingências demográficas, e os avanços técnico-científicos.
O meio envolvente (ambiente e sociedades) existe apenas na medida em que satisfaça as volúpias individuais (as várias filosofias económicas divergem somente no caminho a fazer para cumprir esse desígnio). A simples existência de um paraíso para contemplação não é suficiente; é necessário imprimir-lhe algum tipo de mudança, no pressuposto de que só assim se consegue melhorar a condição humana e as condições de vida associadas. Tal ação não é apenas vista como essencial; é também a expressão da liberdade individual e do direito legítimo de domínio sobre o sistema. É, também, o reflexo de uma húbris egocêntrica ancestral.
Este tem sido um paradigma que elevou a Humanidade a níveis de desenvolvimento nunca antes vividos, apesar das desigualdades, injustiças, e contradições existentes. Mas parece evidente que esta visão da envolvente humana se está a esgotar rapidamente.
Muitos vaticinam a urgência de mudar o estado das coisas, com as sugestões mais radicais a roçar o utópico ou o ideológico: i) estimular uma indústria da desconstrução, e desmantelar a indústria da construção; ii) mudar o padrão de produção e fornecimento de energia; iii) revolucionar o sistema financeiro e bancário; iv) recuperação ambiental, escoltada por um decrescimento económico forçado; v) proibição da agricultura intensiva e extensiva, e reconstrução e reflorestação de habitats naturais; vi) travar e penalizar o consumismo e o enriquecimento lícito; e vii) limitar as liberdades individuais e o crescimento populacional.
Ainda que se implementem tais medidas, é provável que os seus efeitos sejam limitados, se o ser humano não for antes capaz de mudar o modo como define o seu relacionamento com o mundo envolvente. E dado que tal relacionamento contribui para o próprio sentido do que é ser humano, então percebe-se a gravidade da questão, pois como afirmou Eisntein, não se consegue resolver um problema com base no mesmo raciocínio usado para criá-lo.
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