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“Todo homem tem direito a algum vício”: um elogio reiterado às atividades cineclubistas

“Todo homem tem direito a algum vício”: um elogio reiterado às atividades cineclubistas

As limitações atreladas a um “padrão de qualidade” ditado por condições comerciais, que vinculam os parâmetros distributivos à generalização e concomitante subestimação das audiências, fazem com que nem sempre consigamos assistir aos filmes que desejamos na tela grande de um cinema. Obras de caráter alternativo, muitas vezes, ficam reféns de uma corruptela audiovisual da pirataria, que traz consigo uma função exortativa, no que tange à valorização dos filmes buscados. Neste sentido, a atividade cineclubista, enquanto complemento exibidor, serve para manter ativa a paixão por filmes pouco acessíveis. Um desses casos é o excelente longa-metragem “Mar Negro” (2013, de Rodrigo Aragão), que, após breve passagem em festivais específicos de horror e algumas exibições televisivas, permanece infelizmente pouco visto. Mas, sempre que ele consegue alcançar o público, as reações são efusivas e mui elogiosas. Foi o que aconteceu na sessão de estreia de um projeto local, o Cineclube Rua Maruim de Baixo Orçamento, na capital do menor Estado do Brasil — Aracaju, em Sergipe —, onde, na noite de 02 de abril de 2025, algumas dezenas de pessoas assistiram a este ‘cult’ contemporâneo pela primeira vez: o debate ao término da sessão foi empolgadíssimo, como sói acontecer!

Em razão de o enfoque deste cineclube ser a correlação entre o baixo orçamento produtivo e a camaradagem demonstrada pela equipe, que se reveza em mais de uma função, “Mar Negro” serviu como mui proveitosa demonstração de ambos os aspectos: seu realizador é conhecido pela gentileza no tratamento com seus companheiros de trabalho e pela brasilidade adaptativa na aplicação das convenções de terror, sendo deveras aplaudível o seu zelo quanto aos efeitos visuais e de maquiagem. Trata-se, portanto, de um dos diretores brasileiros contemporâneos merecedores de atenção por sua autoralidade!

Ponto culminante de uma trilogia sobre terror ecológico, iniciada com “Mangue Negro” (2008), e continuada através de “A Noite do Chupacabras” (2011), “Mar Negro” surpreende pelo modo como comunga diversos núcleos de personagens, que terminam se encontrando na inauguração do Sururu’s Club, um prostíbulo interiorano comandado pela travesti Madame Úrsula (Cristian Verardi), obcecada pela cantora latino-americana Isidora Fernandez (Mayra Alarcón — que, além de ser uma das produtoras do filme, é casada com o diretor). Na primeira sequência, dois pescadores lamentam a ausência de peixes, enquanto navegam pelo mar, à noite. De repente, um deles, apelidado Cavalo Cansado (Tiago Ferri) puxa uma rede, e percebe que capturou uma arraia contaminada. Logo em seguida, o que ele pensa ser uma sereia morde seu amigo Peroá (Markus Konká), cujos ferimentos logo infeccionam, de modo que, quando ele volta para casa, hostiliza a esposa Indiara (Kika de Oliveira) e os seus dois filhos.

Erigida à condição de protagonista, por ser desejada por vários homens, na comunidade onde reside, Indiara é chamada para trabalhar como assistente de cozinheira durante a festa de inauguração do Sururu’s Club, mas o surgimento de criaturas zumbificadas atrapalhará o plano de sobrevivência dos convidados, alguns deles interpretados por realizadores especializados em filmes de terror, como Joel Caetano, Gurcius Gewdner e Petter Baiestorf. Este último, inclusive, profere um diálogo icônico, quando abaixa as calças ao perceber um deputado amarrado numa cama, e diz que fará com ele “a mesma coisa que o deputado fez com os eleitores, ao longo de seu mandato”. É impedido por seus colegas e pelo jorro de sangue que se segue…

Deveras sagaz no modo como utiliza o humor para criticar os estereótipos de masculinidade tóxica e a hipocrisia dos representantes políticos, o capixaba Rodrigo Aragão demonstra-se bastante hábil na confecção de um roteiro que também abre espaço para o desenvolvimento de uma subtrama romântica, envolvendo o personagem Albino (Walderrama dos Santos), apaixonado por Indiara. Ocorre que ele possui um livro proibido de São Cipriano, o que desencadeará uma inusitada situação de Magia Negra, na qual um demônio é invocado, enquanto uma horda de zumbis ameaça invadir a sua residência. A imagem final é acachapante, naquilo que ela denuncia e preconiza, funcionando como uma metáfora para a decadência política que se instalaria no país, dali por diante, quando representantes da extrema-direita instalar-se-ão no poder, após a tentativa de golpe que culminará no ‘impeachment’ da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Que os espectadores brasileiros não tenham acesso a este filmaço é um pecado, de modo que são muito bem-vindas iniciativas como a do supracitado cineclube, idealizado por Renata Mourão, responsável pelo premiado curta-metragem “Abjetas 288” (2021, codirigido por Júlia da Costa). Talvez falemos mais sobre este empreendimento, em artigos vindouros. Viva o cineclubismo!

Wesley Pereira de Castro.


Fonte da imagem: https://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/14976706.jpg?w=700

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