Entro em uma rede social e vejo minha linha do tempo (TL) cheia de imagens do Super-Homem. Em algumas, ele beija a Mulher-Maravilha; em outras, está com a Lois Lane e segurando um bebê; e em algumas outras ele está com uma aparência mais jovem e beijando um garoto. Descubro então a nova polêmica: a DC Comics anunciou há poucas semanas que Jon Kent, filho de Clark Kent, irá se assumir bissexual em uma história que será lançada ainda neste ano [1].
Não é a primeira vez que a combinação entre homossexualidade/bissexualidade e quadrinhos gera polêmica no Brasil. Em 2019, um caso envolvendo uma revista da Marvel que continha uma cena de beijo entre dois personagens masculinos rendeu muita repercussão, e a Prefeitura do Rio, então comandada pelo bispo da Igreja Universal, Marcelo Crivella, foi acusada de censura [2].
Nos Estados Unidos, polêmicas sobre gays e super-heróis das HQ’s possivelmente são ainda mais antigas. Em 1954, o psicólogo Fredric Wertham publicou seu livro “Sedução do Inocente”, alardeando o “perigo da disseminação da homossexualidade” por meio dos gibis. Seu principal alvo de críticas era a dupla Batman e Robin, que, diga-se de passagem, convive com a fama de gay desde aquela época até os dias de hoje. A obra de Wertham é a principal responsável por isso e, na ocasião, resultou na queima de gibis por todo o país. Eram tempos de Guerra Fria e os EUA viviam um clima de paranoia. A propósito, Wertham era mais um daqueles que viam comunismo e homossexualidade em tudo [3].
A polêmica da hora – Super-Homem bissexual – tem ainda um outro elemento, o jogador brasileiro de vôlei Maurício Souza. Após o anúncio da nova história da DC, o jogador fez um post de tom homofóbico, com a ilustração do beijo entre os jovens e a seguinte legenda: “A, é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar” [4].
O Minas Tênis Clube, onde atua o jogador, pressionado pelos patrocinadores Gerdau e Fiat, pede ao atleta que se retrate. Na “retratação”, em um típico caso em que a emenda saiu pior do que o soneto, Maurício reforça sua posição. E acaba demitido.
Reacionários e suas reações
Há muitas críticas à posição do jogador, mas também há aqueles que o apoiam alegando que ele tem direito a liberdade de expressão. As reclamações e argumentos deste segundo grupo chamaram a minha atenção. Sigo nas redes todos os deputados federais da bancada fluminense (RJ), incluindo os da direita conservadora, e vi que vários embarcaram na polêmica. Luiz Lima (PSL), em um post de apoio ao atleta, criticou o que chamou de “movimentos que pregam a liberdade e empatia, mas que na verdade plantam a discórdia”. Em outro post, acompanhando uma tirinha do Super beijando a Mulher-Maravilha, o deputado escreveu: “Viva a liberdade! Eu gosto de mulher” (e quem perguntou?). A mesma tirinha foi postada pela Major Fabiana (PSL), que fez críticas ao que chamou de “mídia oportunista” e “lacração”. Já Sóstenes Cavalcante (DEM) optou por uma imagem do Superman com Lois Lane e o filho do casal, ainda de colo (provavelmente o mesmo que viria a se assumir bissexual quando jovem), para escrever: “Sigo lembrando da nossa defesa dos valores cristãos e da família. Não nos ajoelharemos diante de pautas, definitivamente, políticas, do movimento LGBT”.
Primeiramente, cabe ressaltar a confusão contida na reação dos… reacionários (com o perdão da redundância). Para se contraporem a uma história em que o filho do Superman se revela bissexual, eles reiteram imagens que atestariam que o pai é hétero. Mas o que tem a ver? Ou será que não entenderam qual personagem que aparecerá beijando outro homem? Outra coisa estranha é falarem em defesa da família e dos valores cristãos, mas não se importarem com a replicação da imagem do Superman beijando sua colega de combates, a Mulher-Maravilha. Mas ele não é casado com a Lois?
Outra curiosidade é que nas declarações tanto de parlamentares quanto de demais pessoas que reagiram contra da história do herói e em favor do jogador Maurício, houve ataques genéricos contra a “lacração”, a “mídia lacradora”, “movimentos”, “esquerdistas” etc. Mas poucos focaram nos protagonistas do caso: Fiat, Gerdau, DC Comics e Minas Tênis Clube. Todos eles entidades privadas.
Sendo assim, gostaria de propor uma visão mais pragmática da discussão. Não porque eu ache essa minha abordagem mais importante (muito pelo contrário), mas porque apelar para o respeito às minorias, aparentemente (e lamentavelmente), parece não surtir muito efeito com esse grupo conservador mais radicalizado da sociedade. Essa abordagem pragmática vai mais pelo caminho do marketing do que do direito.
Cidadãos, mas também consumidores
Se você não é capaz de entender o conceito de cidadania, ao menos entenda o conceito de consumidor. Ou seja, se para você é difícil ver que um outro cidadão, independentemente de sua orientação sexual, possui ou deve possuir os mesmos direitos que você e que, assim como você não quer sofrer nenhum tipo de discriminação, não deveria discriminá-lo, ao menos reconheça no outro um potencial consumidor, que participa da lógica do mercado, que trabalha e tem algum poder aquisitivo.
Sim, essa perspectiva não é a ideal, pois a inclusão e a tolerância à diversidade não devem ser ditadas pelo poder de compra, mas pelo menos contribui para o entendimento de que, uma vez inseridos no mercado, como produtores e consumidores, grupos minoritários passam a fazer parte do público-alvo das empresas. Ou, quando não isso, empresas responsáveis socialmente buscam, no mínimo, uma relação respeitosa com a diversidade e pautada pela inclusão.
Além disso, na medida em que os diversos grupos identitários avançam no campo dos direitos civis, começam a reivindicar também maior representatividade, por exemplo, na mídia e nas produções artísticas. É o que empresas gigantes do entretenimento como a Marvel e a DC Comics já entenderam. Elas têm literalmente se repaginado para se adequar e também representar uma sociedade mais plural. Pessoas que trabalham, possuem direitos e consomem também querem se ver nas histórias que passam pela mídia e povoam o imaginário.
Liberdade de expressão e relatividade dos direitos X livre iniciativa e gestão da imagem corporativa
Se você não é capaz de entender o conceito de relatividade dos direitos, ao menos entenda o princípio da livre iniciativa. Vejamos então. Todos os direitos são relativos, nenhum deles é absoluto. Isso significa que um direito é limitado, em algum caso concreto, por outro direito [5]. Uma pessoa tem direito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade, mas o Judiciário pode autorizar a quebra de sigilo por meio de interceptação telefônica se essa pessoa for investigada em um caso de corrupção, por exemplo.
Da mesma forma, a liberdade de expressão também é um direito relativo, que será limitado quando, por exemplo, se chocar com o direito à honra de uma outra pessoa, o que quer dizer que você não pode se valer de sua liberdade de expressão para denegrir ou discriminar um outro indivíduo. Ou seja, seu direito vai até onde começa os direitos dos outros. Nisso consiste a relatividade ou limitabilidade dos direitos fundamentais [6]. Curiosamente, muitas pessoas que parecem não entender como isso funciona e alegam uma liberdade de expressão irrestrita já acionaram ou ainda vão acionar a justiça reclamando terem sofrido injúria ou difamação. O que significa que, quando elas são o alvo, entendem a relatividade dos direitos rapidinho.
Mas se essas ideias parecerem complexas demais, entenda o princípio da livre iniciativa, que consiste na liberdade dos cidadãos e das empresas participarem do mercado e gerirem seus negócios, o que significa vender e comprar produtos e serviços, negociar preço, tomar decisões administrativas etc. O empreendedorismo está na moda, correto? Pois a livre iniciativa inclui a liberdade de empreender.
Gerdau e Fiat decidem quem vão patrocinar e têm liberdade para deixar de patrocinar, se assim entenderem ser melhor, se entenderem que o grupo, entidade ou pessoa que recebe o patrocínio não se encaixa em suas missões e valores empresariais. Sabe aquela história de vestir a camisa da empresa? Pois então, quem não veste depois não pode reclamar.
Da mesma forma, a DC Comics, enquanto uma gigante mundial do entretenimento, tem sua liberdade artística e de criação. A empresa entende que é hora de diversificar seus personagens, ser mais inclusiva e abrangente. Quem pode impedir isso? Por fim, o Minas Tênis Clube demitiu o jogador. Maurício usou de sua liberdade de expressão para fazer um juízo de valor negativo de todo um grupo de pessoas (o que inclui até companheiros de equipe). Em contrapartida, o clube usou sua liberdade para optar por uma demissão (pressionado por patrocinadores, claro). A livre iniciativa abrange o direito de demitir. Como fica o Minas Tênis Clube em seu direito de demitir?
Extrema-direita em colisão com o liberalismo, a democracia, as relações de consumo e as práticas de mercado
Até o momento, Maurício Souza não foi processado. Portanto, tudo o que está ocorrendo com ele tem se dado dentro das relações de consumo e das práticas de mercado de um sistema capitalista que, frequentemente (e ironicamente), o mesmo grupo reacionário que agora defende o atleta gosta de enaltecer, com direito a mesma paranoia anticomunista de Fredric Wertham na década de 1950. As decisões até o momento se deram mais no terreno do marketing do que do direito.
Por isso adotei essa abordagem que considero pragmática. Eu gostaria de defender o direito que um ser humano tem de ser tratado com dignidade, o direito de ser cidadão, de ser diferente e ainda assim ser tratado como igual, de não ser retratado como pária por conta de credo, cor ou sexualidade, mas para uma parcela de pessoas que perderam a vergonha de serem preconceituosas, incluindo seus líderes políticos, esse discurso soa demodê, “politicamente correto”, parece não surtir muito efeito.
Então ao menos que entendam o direito das empresas de criar, patrocinar e demitir. Que entendam que elas têm autonomia para gerir suas imagens corporativas conforme diretrizes de responsabilidade social. Não foi a “a lacração”, não foi “o movimento”. Foram as empresas, foi a iniciativa privada! A polêmica envolvendo o novo Super-Homem bissexual, filho de Clark Kent, mostra o que já sabemos faz tempo: a extrema-direita conservadora brasileira não tem problemas somente com o socialismo, como adoram bradar, mas também com o próprio liberalismo e os valores e mecanismos desenvolvidos por ele para que haja democracia e para que não se instale o que Alexis de Tocqueville chamou de “tirania da maioria” [7 e 8] e apontou como um risco para o estado democrático de direito e para as liberdades individuais.
Na mesma semana da polêmica demissão de Maurício relacionada à nova HQ, Monark, apresentador do Flow Podcast, perdeu o patrocínio dado ao seu programa pelo iFood [9]. Não por homofobia, mas por posicionamentos que foram interpretados como racistas. Em sua rede social, Monark havia questionado se uma opinião racista deve mesmo ser considerada crime, demonstrando a mesma visão distorcida de liberdade de opinião/expressão como algo irrestrito e não compreendendo a relatividade dos direitos fundamentais, que é o que prevalece no direito brasileiro. Talvez seja a hora de Monark vestir a camisa das empresas que o patrocinam. Aquela coisa de mudar o mindset…
De certo modo, a extrema-direita se chocou com o capital por causa do Super-Homem. Ao menos o senador Flávio Bolsonaro está sendo mais franco e propondo boicote a Gerdau e Fiat [10], não se limitando a evasivas contra “a esquerda”, “os lacradores” e “a mídia”. Quem tiver carro da Fiat e quiser se desfazer dele como forma de desagravo à empresa, pode passa-lo para o meu nome porque estou aceitando.
Referências:
[3] https://super.abril.com.br/cultura/o-doutor-que-odiava-herois/
[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Tirania_da_maioria
[8] https://www.youtube.com/watch?v=-FZtKVTGvzY
[10] https://br.noticias.yahoo.com/ap%C3%B3s-demiss%C3%A3o-jogador-maur%C3%ADcio-souza-173435469.html