EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

“Sem Carnaval, não se pode reiniciar a vida cotidiana”, ou uma tentativa de (re)afirmar-se, para além da polarização político-partidária

“Sem Carnaval, não se pode reiniciar a vida cotidiana”, ou uma tentativa de (re)afirmar-se, para além da polarização político-partidária

Em 16 de agosto de 2022, iniciou-se, no Brasil, o período oficialmente autorizado para a propaganda eleitoral dos candidatos que concorrerão aos cargos de Presidente da República, Governador, Senador, Deputado Federal e Deputado Estadual, no pleito cujo primeiro turno ocorre em 02 de outubro de 2022. Com isso, arregimentou-se, mais uma vez, a equiparação entre a disputa partidária e um campeonato de futebol, visto que a polarização notada entre os dois principais candidatos à presidência do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro, converte os seus respectivos eleitores em arqui-inimigos. As trocas de acusações e as ameaças virulentas proliferam em ambos os lados, através das mídias sociais e de conflitos vicinais, repletas de provocações e chistes. O mais importante, entretanto, fica escamoteado: não estamos diante da mera possibilidade de reeleição do presidente atual, mas de uma questão ética, de uma necessidade de sobrevivência moral.

Conforme reiteramos nesta coluna, através de uma expressão-chave, o bolsonarismo representa a negação pragmática de valores essenciais da humanidade. Sob a bandeira hipócrita de noções como Tradição, Família e Propriedade – herdadas do fascínio do referido candidato à reeleição pela violência do período ditatorial militar –, seus eleitores apregoam o ódio generalizado a quem quer que se oponha a seus discursos encolerizados e comumente chulos, através do jargão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Não há espaço para a diversidade religiosa sob esta égide pentecostal. Tal como acontece em sociedades de caráter fundamentalista, intenta-se uma conjunção indissociável entre Igreja e Estado. Líderes religiosos, portanto, gozam de isenções de impostos e outros benefícios monetários, desde que demonstrem apoio ao candidato cujo mandato expira neste ano. Aproveitando-se a natureza pretensamente religiosa dessa conjuntura discursiva, ousamos dizer que a verdadeira polarização ocorre entre a reiteração do Apocalipse e a possibilidade de sobrevivência a um implacável dilúvio de quatro anos…

Sem que precisemos aderir aqui ao apoio ostensivo a um candidato nominal, é óbvio que lidamos com um inimigo declarado, contra o qual é mister demonstrar o nosso repúdio. E podemos fazer isso através dos mais variegados estratagemas. Um deles é incentivar declaradamente o consumo de obras de arte, visto que isso parece ofender o referido candidato. O que, lamentavelmente, não é uma tendência brasileira: a extrema-direita segue disseminando-se em vários países, na contemporaneidade. E, de forma tão discreta quanto intensiva, é isso que percebemos nas entrelinhas do documentário “Terminal Norte” (2021, de Lucrecia Martel), através do viés exaltador que salta aos ouvidos na música de resistência composta e cantada pelas personagens escolhidas pela diretora, que demonstram-se contestatórias pela simples existência!

Filmado em 2020, durante a fase inicial da pandemia do Coronavírus (ou “a peste”, segundo um letreiro inicial), quando os concertos de vários artistas foram cancelados, acompanhamos uma trupe de artistas folclóricos – em sua maioria, mulheres – que passeia por regiões rurais da Argentina. Cada qual a seu modo, esses artistas exprimem em seus versos e notas a atitude emergencial que é seguir vivo, enquanto legítima arte do dia a dia. Há, entre eles, uma cantora de ‘trap’ (B Yami) e uma travesti pioneira (Lorena Carpanchay), que defendem com vigor as suas especificidades identitárias, mas a protagonista do filme é a cantora Julieta Laso, que comove-nos com sua voz rouca e suas letras mui expressivas, dando continuidade à tradição internacionalmente consagrada por Violeta Parra [1917-1967]. Cabe descobri-la neste interessante média-metragem, para compartilharmos do fascínio que a cineasta demonstra por ela.

Ainda que não seja um dos melhores trabalhos da realizadora – que é sumamente autoral num dos cinemas nacionais mais elogiados pela crítica especializada, o argentino –, este filme externa o tipo de força que nos motiva diante da onda conservadora hodierna: a partir do desamparo que advém das agressões que sofremos perante a consolidação de instituições preconceituosas, surge a consciência de uma nova identidade comunitária, quando percebemos que temos bastante a ver com pessoas que sequer nos deparamos anteriormente. É o que acontece com a pianista Noelia Sinkunas no filme, por exemplo. E é também o que precisamos constatar nos meandros competitivos da eleição programada para ocorrer em outubro, caso não aconteça algum golpe anticonstitucional, conforme vem sendo ensaiado desde o ‘impeachment’ da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Que sobrevivamos, por conseguinte – e que a democracia siga firme. Na pior das hipóteses, que ainda possamos afirmar o básico: a Terra é redonda, vacinas são eficazes e as urnas eletrônicas funcionam!

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]