Falecido em 06 de dezembro de 2018, aos 76 anos de idade, o paulistano Alfredo Sternheim foi um dos mais importantes cineastas da Boca do Lixo, região de volumosa produção cinematográfica que ficou estigmatizada pelo erotismo, não obstante ter erigido um modelo autogerido de financiamento que desafiou as interdições da Ditadura Militar brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Conhecido por seu classicismo – vide o requinte de sua adaptação lúbrica de uma das obras-primas literárias de José de Alencar em “Lucíola, o Anjo Pecador” (1975) – este cineasta ousou ao não sucumbir aos pseudônimos quando precisou dirigir filmes de sexo explícito na fase de decadência da Boca do Lixo. Entretanto, seus filmes pornográficos estão longe de recair na mera autotelia do sexo…
Tendo realizado cerca de uma dezena de produções explícitas, Alfredo Sternheim teve sua carreira directiva prejudicada por conta destes filmes. Ao reclamar que, infelizmente, “o cinema brasileiro sempre pegou carona em seu próprio País”, este diretor trabalhou inicialmente como assistente do cineasta intimista Walter Hugo Khouri (1929-2003), mas logo soube demarcar suas características estilísticas específicas: malgrado conviver com as imposições erotógenas de seus produtores, Alfredo Sternheim inseria a sexualidade de maneira reivindicativa em suas realizações. Homossexual assumido, ele foi um dos mais audaciosos na abordagem desta temática, abordando-a de maneira direta em “Corpo Devasso” (1980) e tangencial em quase todos os seus filmes. E, obviamente, trouxe o assunto à tona em seus filmes explícitos.
“Sexo dos Anormais” (1984) destaca-se por naturalizar a vida sexual das travestis. Protagonizado pela diva ‘punk’ Cláudia Wonder (1955-2010), o roteiro deste filme tem como cenário central uma clínica de reeducação sexual, onde encontramos as duas personagens principais: Miriam (Silvia Dumont), jovem de classe média que padece de uma estranha ninfomania monogâmica; e Jéssica (Cláudia Wonder), travesti deprimida que frustrara-se ao tentar mudar de sexo por causa de uma paixão rural adolescente, que a abandonou ao vê-la com seios fartos. Ou seja, apesar de ser um filme pornográfico, o sexo é problematizado e apresentado como algo que causa sérios problemas relacionais quando mal-administrado. Alguém ousaria crítica tão audaz?
Além desse inusitado ponto de partida – que deslegitima o imposto título preconceituoso – o roteiro de “Sexo dos Anormais” possui várias piadas contra os desmandos econômicos enfrentados pelo Brasil naquela época. Num hilário ‘flashback’, por exemplo, o FMI (Fundo Monetário Internacional) aparece comicamente transladado como “Fundo da Merda Instantânea”. Trata-se de um apelido para o laxante de que a personagem deve se servir a fim de sobreviver como prostituta numa rotina de labuta erótica que eventualmente se depara com a coprofagia (risos). Tem muitíssimo a ver com a situação política brasileira atual, inclusive.
Num filme produzido no ano seguinte, “Borboletas e Garanhões” (1985), Alfredo Sternheim ousa novamente ao fazer com que o mote romântico que baliza a trama trouxesse à tona uma inventiva constatação de classes sociais em conflito: o ambicioso Lauro (Wagner Maciel) está prestes a casar-se por interesse com a milionária Leonora (Débora Muniz). Entretanto, apaixona-se perdidamente por Yoko (Sandra Midori). Descobrirá, a posteriori, que esta última foi violentamente humilhada por sua noiva, quando tentou recuperar o emprego de seu pai, despedido sumariamente por ter envelhecido.
Mais uma vez, as situações sexuais aparecem como fortuitas num enredo que obriga o espectador a refletir sobre as inelutáveis contradições nacionais: noutro momento, o capataz da fazenda onde Lauro passará a sua despedida de solteiro perceber-se-á apaixonado por um homem travestido de mulher e, numa cena circunstancial, um dos amigos de Lauro pergunta à travesti com quem transa por que ela não operou o pênis, a fim de extraí-lo. A resposta não poderia ser mais taxativa: “e eu vou gozar por onde? Pelo nariz?!”. Imaginem o impacto de situações como esta em plena ditadura militar – neste caso, em seu derradeiro ano, visto que, oficialmente, a 15 de março de 1985, o Brasil voltou a ser uma democracia…
Com a abertura democrática, paradoxalmente, tornaram-se exíguas as críticas sociopolíticas nos enredos pornográficos, que cederam às exigências cada vez mais machistas de um mercado saturado por filmes estrangeiros de sexo explícito, que foram importados aos borbotões com o fim da Censura institucional. “Comando Explícito” (1986), por exemplo, é um filme pouquíssimo inspirado de Alfredo Sternheim, no qual a imoralidade dá a tônica roteirística, visto que a trama e centrada nos roubos e estupros praticados por um quarteto de ladrões, cujo líder é obcecado por uma rapariga que mantém-se virgem a despeito das insistentes tentativas sexuais de seu namorado. Não há mais críticas diretas ao Governo, mas situações de abuso de poder que descambam para as penetrações e ejaculações forçadas. Isso nos diz alguma coisa?
É nesse momento que este texto revela o seu objetivo: além de configurar-se numa necessária homenagem ao recém-falecido Alfredo Sternheim, infelizmente desmerecido por realizar filmes como os supramencionados – hoje, disponíveis apenas em endereços eletrônicos destinados à difusão de pornografia comercial – a intenção dominante é questionar como se pode resistir às medidas governamentais que tendem a implantar um novo tipo de censura no Brasil, conforme ocorre nos dias hodiernos. Voltaremos a este assunto nos capítulos vindouros desta coluna sobre crítica de cinema, mas também sobre militância política nos interstícios de obras de arte subestimadas por sua enganosa explicitude. Na vida como no sexo, convém analisar com cuidado o que se encontra nas entrelinhas do gozo!