Numa conferência de imprensa proferida na manhã do dia 15 de março de 2022, o crítico e idealizador do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, Amir Labaki, anunciou a programação da vigésima sétima edição deste evento, que ocorre entre os dias 31 de março e 10 de abril do referido ano. Acompanhado por representantes de entidades que apoiam o Festival, foram conhecidos os filmes que constarão da programação, além de divulgado o pôster oficial, com base numa fotografia do produtor cinematográfico Luiz Carlos Barreto.
Além dos curtas, médias e longas-metragens que estarão nas mostras competitivas, algumas exibições paralelas mereceram ênfase por parte do crítico, como uma versão restaurada da obra que inspirou o título do festival [“É Tudo Verdade” (1993, de Bill Krohn, Myron Meisel & Orson Welles), sobre as filmagens interrompidas de um filme no Brasil] e a redescoberta de uma produção de Dziga Vertov [1896-1954] que se pensava estar perdida, “A História da Guerra Civil” (1921). Os dois mais recentes lançamentos do crítico e documentarista britânico Mark Cousins também foram anunciados: “A História do Olhar” (2021) e “A História do Cinema: Uma Nova Geração” (2022), ambos realizados durante a quarentena protetoral contra o avanço do CoronaVírus.
Por motivos óbvios, alguns filmes sobre esta pandemia constam na programação, que abarca as mais diferentes temáticas e nacionalidades, incluindo o muito aguardado “Adeus, Capitão” (2022, de Vincent Carelli & Tita), sobre o falecimento de um líder indígena paraense. Demonstrando a sua insatisfação contra o boicote cultural das produções russas, Amir Labaki aproveitou a oportunidade para reiterar algo que permeia os títulos selecionados por sua curadoria: um olhar que seja frontalmente “contra as tiranias e em defesa da liberdade”.
Quem pôde participar desta conferência de imprensa, assistiu em primeira mão a um dos títulos que serão exibidos na programação, “Diários de Mianmar” (2022), documentário creditado ao Coletivo Cinematográfico de Mianmar (antiga Birmânia), e que foi recentemente premiado no Festival Internacional de Cinema de Berlim. A opção pela ausência de créditos individuais tem a ver com as perseguições sofridas por quem ousa documentar os abusos de poder cometidos pelo general Min Aung Hlaing, que tomou definitivamente o poder no país, através de um golpe de estado, em 01 de fevereiro de 2021.
Na primeira seqüência do filme, aquela que tornou-se uma das cenas mas icônicas deste primeiro quarto do século XXI: o instante em que uma moça pratica exercícios aeróbicos enquanto caminhões e tanques organizam-se para destituir os governantes que foram democraticamente eleitos, instituindo uma ditadura militar no país. Seguem-se diversos esquetes (alguns ficcionais) sobre as conseqüências deste golpe de estado na vida dos birmaneses. Um deles, por exemplo, mostra uma pianista declarando que, “quando conseguir aquilo que mais deseja, tatuará uma borboleta no corpo”, o que não ocorre efetivamente, visto que ela é assassinada durante um protesto. Um lepidóptero visitará carinhosamente o namorado dela, à guisa de consolo…
Em razão de a maior parte da população birmanesa ser budista, há diversas situações metonimizadas pelas ações de pequenos animais: numa delas, a borboleta supracitada é cercada por quatro lagartixas; noutra, diversas formigas amontoam-se ao lado dos restos de sorvete que uma garota ingere enquanto pondera se conta ao seu jovem namorado que está grávida, visto que ele está prestes a abandoná-la por algum tempo, para participar de um treinamento de guerrilha. Em contexto de guerra, é perigoso estar apaixonado, conforme anuncia outra pessoa, num instante anterior, explicando as razões do término abrupto de seu relacionamento.
Em meio às seqüências ficcionais que variam do drama ao terror (num determinado momento, o fantasma de uma mulher assassinada pelos militares retorna à casa onde seu noivo assistia a um seriado estadunidense na televisão; noutro, um homem rasga o saco plástico preso em sua cabeça para deixar livres olhos e ouvidos, a fim de prestar atenção ao que acontece ao seu redor), há variegados instantes filmados através de telefones celulares, nos quais pessoas são aprisionadas ou espancadas sem saberem o porquê. Crianças choram, na esperança de evitar que os policiais carregassem os seus pais, mas em vão. Câmeras são estapeadas, registros videográficos são proibidos, e as convocações para as greves que demonstram a desobediência civil dos habitantes são imperativas – mas nem todos podem participar de imediato, diante das incertezas relacionadas ao futuro. Como criar um filho num lugar onde não há esperança de sobrevivência? Trata-se de um filme curto (apenas setenta minutos de duração), mas extremamente potente em sua exposição de circunstâncias evitadas pelos meios de comunicação tradicionais: “tu podes me ouvir?” [eis o clamor que fica após a derradeira imagem…]
“Diários de Mianmar” estará constante na programação do festival É Tudo Verdade, que, obedecendo a uma tendência contemporânea, promoverá tanto sessões presenciais (nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro) quanto exibições através da Internet, aumentando o alcance do público a este importantíssimo evento, com viés assumidamente político e humanista. O filme de encerramento será o documentário “O Território” (2022, de Alex Pritz), realizado em parceria com o povo Uru-eu-wau-wau, de Rondônia. Estejamos a postos, portanto!
Wesley Pereira de Castro.