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“Por que utilizar um código antigo para espelhar algo novo?” (ou “o ano termina, e começa outra vez”…)

“Por que utilizar um código antigo para espelhar algo novo?” (ou “o ano termina, e começa outra vez”…)

Nem bem as comemorações associadas ao Réveillon acabam e os cinéfilos mais afoitos começam a despejar na internet o calendário de estréias cinematográficas do ano vindouro, cumprindo à risca a programação instaurada pelas produtoras e distribuidoras, que mantêm a massa de espectadores ansiosa por novos produtos midiáticos que, em suas variações clicherosas, oferecem exatamente aquilo que é esperado, ou seja, o que eles já possuem no dia a dia…

Soa paradoxal essa constatação – e, em termos frankfurtianos, até mesmo apocalíptica – mas ela é também redundante, no sentido de que, ao invés de descobrir o cabedal de conteúdos ainda não vistos (e já lançados), parte considerável das platéias desfere expectativas exacerbadas em capítulos vindouros de franquias ainda em curso. Como se resolve isso? Através de uma fórmula pretensamente psicanalítica: “nada conforta tanto a ansiedade quanto um pouco de nostalgia”. Origem da citação: um dos produtos fílmicos mais desnecessários de todos os tempos, “Matrix Ressurrections” (2021, de Lana Wachowski).

A fórmula em pauta é pronunciada pelo risível personagem de Neil Patrick Harris no longa-metragem supracitado. Batizado como O Analista, ele atende a funções internas de contínua reprogramação vital do protagonista Thomas Anderson (Keanu Reeves), envelhecido após os eventos da trilogia anterior e realocado profissionalmente como desenvolvedor de jogos de realidade virtual, cujos enredos utilizam justamente as ações dos personagens como conteúdo elementar. Sentindo-se perturbado por lembranças que ele entende como alucinações, o subjugado avatar terreno do predestinado Neo é diuturnamente entorpecido mediante um estoque infindável de pílulas azuis, enquanto ouve os chavões de auto-ajuda de seu psicanalista. Estaria ele feliz?

Um dos melhores aspectos deste mais recente filme está precisamente na auto-sabotagem discursiva que inunda o roteiro em sua primeira metade: ao adotar como pontos de partida tramáticos as teorias de hiperinterpretação efetivadas pelos fãs da trilogia original, a diretora interdita boa parte das acusações que este quarto capítulo possa receber, no sentido de que tudo é projetado como intencional. Numa reunião criativa da empresa para a qual Thomas Anderson trabalha, seus colegas revisam tudo o que foi falado sobre os filmes prévios, inclusive questionando as decisões autoritárias da produtora Warner. Inúmeras metáforas são trazidas à tona, desde as referências às obras de Platão e Lewis Carroll até as teses de que o universo-Matrix seria uma ilustração transexual ou um referendamento do Capitalismo, que a tudo assimila. Com isso, quase qualquer crítica é abortada: afinal, foi tudo pensado pelo roteiro. E, de fato, isso funciona muito bem, até Neo ser acordado novamente…

Repetindo o mesmo procedimento do já clássico filme de 1999 [co-dirigido pela irmã da diretora, Lilly Wachowski], Neo encontra Morpheus (agora jovem, e interpretado por Yahya Abdul-Mateen II), ingere a pílula vermelha e desperta em seu casulo humano, no centro da enorme colméia de alimentação maquínica. Diferentemente da situação anterior, seu corpo não parece irremediavelmente atrofiado e ele consegue movimentar-se com certa desenvoltura, inclusive percebendo que sua amada Trinity (Carrie Anne-Moss) jaz poucos casulos abaixo do seu. É resgatado por algumas máquinas do bem – sim, agora elas existem! – e levado a uma colônia de rebeldes, onde os eventos do segundo e terceiro filmes são repetidos. Por mais que se tente simular algum perigo irreversível, é tudo previsível na condução da narrativa: alguém exclama “precisamos de um milagre” – e é óbvio que ele ocorrerá!

Se, ao erigir uma teia de elucubrações acerca do que seria ou não realidade – inclusive, assumindo a canção psicodélica “White Rabbit”, composta e interpretada pela banda Jefferson Airplane, como componente assumido da trilha musical –, o filme funcionava muito bem em sua aura masturbatória, ao perscrutar a mitologia revoltosa de Io (cidade que surge em substituição à extinta Zion), o roteiro degringola de vez: recorre a um messianismo quiçá piorado, na comparação com a lógica controladora da Matrix. A realidade não virtual de Io é impregnada de tecnologia, anglicismos e contrações nomenclaturais (Sequóia, por exemplo vira Seq!). Há o colaboracionismo de máquinas sensitivas e o armamentismo é louvado de maneira sumamente fetichista. Além disso, a personagem Niobe (Jada Pinkett Smith) reaparece, sobremaneira envelhecida, defendendo as noções tradicionais de hierarquia militar: “trate-me como general”, grita ela para Neo em determinado momento.

Dentre todas as teorias hiperinterpretativas injetadas oportunamente no filme, a de que a Matrix seria o Capitalismo e as cisões existentes entre os rebeldes corresponderiam aos conflitos entre os diversos movimentos de esquerda política é a que faz mais sentido. Enquanto tenta explicar aos seus subordinados que resgatar Trinity seria um contrassenso, a general Niobe é confrontada pela estouvada Bugs (Jessica Henwick): “tu estás muito mais interessada em cultivar frutas que em salvar pessoas”, como se uma ação fosse contrária à outra, sendo que ambas são interdependentes. Em sua exposição humana, “Matrix Ressurrections” revela-se um fiasco, sumamente contraditório, inclusive, visto que a salvação de Neo requer apanágios cada vez mais sobrenaturais. “Tu consegues voar?”, pergunta alguém. Ele tentará diversas vezes ao longo do filme, até perceber que este dom pertence a outra pessoa.

Logicamente, em sua insistência em abolir as opções maniqueístas (“livre arbítrio X destinoà frente delas], o filme é, ao mesmo tempo, esperto e confuso. O outrora vilanaz Agente Smith (agora interpretado pelo jovem Jonathan Groff) desempenha funções ostensivamente contraditórias e as firulas do enredo são convertidas em chacota numa ridícula cena após os créditos finais. Em muitos momentos, o filme parece que não se leva a sério, introduzindo clímaces de ação em instantes inconvenientes e sem a consistência propositiva anunciada pelas discussões anteriores. “A escolha é uma ilusão, já sabes o que tens que fazer”, repetem tanto os comandados da Matrix quanto os revoltosos de Io. Para que teorizar tanto acerca deste filme, então? Ele apenas embaralha os filosofemas dos episódios anteriores, num imbróglio teleológico que possui muito apelo visual (e, neste sentido, as máquinas fascinam muito mais) e um enfadonho apelo à monogamia heterossexual enquanto motivação vitalícia. Em sua sanha assimiladora, o roteiro demonstra-se quase kardecista em suas recorrências.

Tudo isso quer dizer que o filme é ruim? Depende de quem mergulha no universo: há quem goste e há quem desgoste, todas as apreciações são válidas. Mais urgente que isso é perceber como a indústria hollywoodiana converte a sua crise contemporânea de narrativas em recurso de reutilização contínua de idéias já desgastadas, hipnotizando as platéias que aceitam os clichês como motes revolucionários. Talvez já não façamos isso cotidianamente, na manutenção de nossas crenças ideológicas? Quando a Terra dá mais uma volta em torno do Sol, o ano é reiniciado, as convenções são redirecionadas, os planos empresariais são publicizados. Aproveitemos o que ainda experimentamos como vida, portanto!

Wesley Pereira de Castro.

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