Os pastores evangélicos brasileiros frequentemente retomam o discurso da defesa de algum governante baseado na ideia bíblica da “autoridade constituída por Deus”. Será que trata-se de uma doutrina cristã inequívoca e incontestável? Será que há algum consenso entre os cristãos sobre a ideia da “autoridade constituída por Deus”? Não tenho a pretensão de apresentar respostas definitivas, mas apenas indicar algumas pistas a partir das reflexões de teólogos.
Diversos teólogos refletiram sobre a relação entre religião e política, e especificamente sobre a ideia da “autoridade constituída por Deus”, tais como: Karl Barth, Paul Tillich, H. Richard Niebuhr, Leonhard Goppelt, Vernand Eller, Jacques Ellul, Ernst Kaesemann, Richard Shaull, Neil Elliott, Richard A. Horsley, entre outros. Refletiram a respeito das palavras do apóstolo Paulo na Carta aos Romanos: “Cada um se submeta às autoridades constituídas. Porque não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus” (Rm 13,1 – NBP).
Contrariando a insistência dos pastores brasileiros, constata-se que não há apenas uma leitura para esse texto paulino. A intenção aqui é mencionar algumas leituras possíveis de forma resumida.
- Leitura conservadora:
As leituras mais conservadoras dizem que o texto do apóstolo Paulo convida todo cristão a obedecer cegamente os governantes como uma forma de servir a Deus. - Leitura do Leonhard Goppelt:
Leonhard Goppelt interpretou a “submissão às autoridades” proposta por Paulo como um convite para os cristãos integrarem-se na ordem política e religiosa vigente, para atuarem de forma responsável no sentido de buscar o bem-estar para todos, inclusive para os não cristãos. - Leitura do Jacques Ellul:
Jacques Ellul defendeu que esse texto (Rm 13,1) seja lido no contexto do capítulo anterior. Ou seja, no final do capítulo anterior Paulo fala sobre a necessidade de amar os inimigos e combater o mal com o bem. Neste sentido, as autoridades romanas devem ser entendidas como inimigas dos cristãos e até as atitudes benevolentes se caracterizam como oposição a elas. - Leitura do Richard A. Horsley:
Richard A. Horsley propõe a leitura do ponto de vista de baixo, das comunidades cristãs perseguidas pelas autoridades imperiais romanas. Neste sentido, Paulo buscou a preservação das vidas dos cristãos primitivos, supostamente queria evitar uma rebelião que poderia ser brutalmente reprimida. - Comentário da Nova Bíblia Pastoral (NBP):
O comentário da Nova Bíblia Pastoral levanta a hipótese de tratar-se de uma crítica às autoridades romanas que não buscavam o bem comum: “Não estaria Paulo [em Rm 13,1-7] endereçando uma crítica às autoridades romanas que ultrapassavam todo limite da exploração, chegando a usurpar o poder de Deus?” (nota, p. 1382). E também sugere a leitura a partir de contrapontos com outros textos do Novo Testamento que apresentam críticas às autoridades terrenas (por exemplo: Lc 22,25; At 5,29; 1Pe 2,13-17).
Ainda há muitos aspectos não mencionados e muitas outras leituras possíveis desse texto do apóstolo Paulo. Aparentemente grande parte dos pastores insiste na leitura conservadora, mas trata-se de uma leitura de ocasião ou de conveniência. Quando há menção à “submissão às autoridades” é somente em relação aos governantes que agradam os respectivos pastores, caso contrário isto não é mencionado.
Olhando para a diversidade de leituras, acredito que é o momento de todo cristão dissociar a ideia de “autoridade constituída por Deus” de qualquer governo ou governante, é o momento de compreender as palavras do apóstolo como um convite para todo cristão buscar o bem-estar comum, defender as pessoas mais vulneráveis, defender o meio ambiente, e combater toda injustiça.
Referências:
Bíblia. Português. Nova Bíblia Pastoral (NBP). São Paulo: Paulus, 2014.
Ellul, J. Anarquia e cristianismo. São Paulo: Garimpo, 2010.
Goppelt, L. Teologia do Novo Testamento. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2003.
Horsley, R.A. (org.). Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004.