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“Por isso, o menino não fala: ele sente a tensão” — assim na Turquia como no Brasil!

“Por isso, o menino não fala: ele sente a tensão” — assim na Turquia como no Brasil!

Conforme acontece todos os anos, os cinéfilos brasileiros ficam em polvorosa no mês de outubro, por conta da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, quiçá o evento de exibições cinematográficas mais importante do ano. Graças a esta mostra, consegue-se assistir aos indicados e premiados dos principais festivais ao redor do mundo, além de conferir estreias nacionais importantes. Há também debates, palestras, discussões, panoramas de mercado e encontros entre amigos. A edição de 2024, a quadragésima oitava, ocorrida entre os dias 17 e 30 de outubro, coincidiu com o período eleitoral, na maior cidade da América Latina, e, por conta disso, os cinéfilos lidaram com os desmandos do prefeito Ricardo Nunes, que concorria à reeleição. A cidade ficou sem energia elétrica por alguns dias, em diversas regiões, e, mesmo assim, o referido prefeito logrou êxito em seu intento, de modo que o seu mandato foi renovado por quatro anos. Nos filmes, a vida é mais fácil de suportar que na realidade?

No documentário “Os Maus Patriotas” (2024), o diretor Victor Fraga — que também esteve presente no evento — interroga o cineasta Ken Loach e, em determinado momento, pergunta-lhe se um realizador socialista pode servir-se de algum gênero que não seja o realismo. O filme turco “Rocinante” (2023, de Baran Gündüzalp) responde, na prática, de maneira mui similar ao que diz o britânico: seu enredo atualiza aquilo que vimos no clássico “Ladrões de Bicicleta” (1948, de Vittorio De Sica), inclusive com algumas cenas explicitamente inspiradas neste filme, mas abrindo espaço para impressionantes intervenções oníricas, sem deixar de ser extremamente realista. O motivo: como os personagens estão permanentemente cansados, em razão de trabalharem (ou buscarem emprego) o tempo quase inteiro, precisam cochilar, eventualmente. E é quando os eventos e situações do contexto em que eles vivem são transmutados em sonhos tormentosos — mas também sensuais.

O título “Rocinante”, obviamente, faz menção ao cavalo do personagem literário Dom Quixote de la Mancha. Trata-se da motocicleta do protagonista Salih (Fatih Sönmez), que está desempregado. Passa os dias de agência em agência, mas é comumente rejeitado por, pasmem, “possuir experiência demais”. Ao ser confundido com um mototaxista por uma passageira, ele resolve cadastrar-se num desses aplicativos e dedica-se a esta profissão improvisada. Entretanto, algumas contingências atrapalharão o seu contentamento inicial: a motocicleta começa a apresentar defeitos, devido à sobrecarga de peso dos passageiros, e a relação com a sua esposa ficará um tanto distanciada: quando ela demonstra interesse em fazer sexo, por exemplo, ele desmaia de cansaço!

A despeito das agruras que enfrenta, Ayse (Nilay Erdönmez, esplêndida) não cede ao pessimismo: arrojada, ela não rejeita a ocupação como atendente de telemarketing, mesmo possuindo diploma em Arquitetura. Como não tem com quem deixar seu filho de seis anos, Emre (Can Demir), que padece de um distúrbio que impede que ele se manifeste através de palavras, ela o leva para o seu local de trabalho. Reclamam com ela, entretanto, que consegue a oportunidade de trabalhar em casa, e chega mesmo a atender aos clientes enquanto está no banheiro, tamanha a demanda, além da necessidade de conseguir dinheiro, emergencialmente, pois eles estão prestes a ser despejados de onde moram e precisam pagar uma psicopedagoga, para auxiliar no tratamento de Emre. Até que ela decide trabalhar como se fosse Salih, no período noturno…

Premiado em alguns festivais pouco divulgados, o roteiro deste filme — coescrito pelo diretor, que é estreante em longas-metragens — surpreende pelo modo como concilia a denúncia sobre questões urbanas da contemporaneidade (reunidas através de neologismos como uberização e gentrificação) com um humanismo inequívoco, que faz com que continuemos crendo na sinceridade do afeto entre Ayse e Salih, não obstante tudo o que eles enfrentam. Por vezes, o marido periga tornar-se violento, e comporta-se de maneira injusta com Ayse, ignorando que os seus trabalhos domésticos são deveras exaustivos. Mas eles não evitam o diálogo e chegam ao entendimento, mesmo quando algo devastador acontece. Enquanto brinca sozinho, já que sua mãe e seu pai estão constantemente trabalhando, Emre assiste ao longa-metragem “Taxi Driver Nebahat” (1970, de Süreyya Duru), que aborda justamente o dilema de uma mulher que torna-se motorista, depois que seu pai morre, e sofre hostilidades perenes, por causa do machismo extremado da sociedade turca; na cabeceira de Salih, está o seu livro favorito, “Os Despossuídos”, de Ursula K. Le Guin, que é rasgado durante uma das brincadeiras de Emre; esforçando-se para não se comunicar durante as viagens motociclísticas, para não ser desvendada como mulher e ficar à mercê de agressões ou estupros, Ayse é, entretanto, reconhecida por uma gentil passageira transexual, que oferece-lhe uma farta gorjeta. Há muito nas entrelinhas de “Rocinante”, demonstrando que ele é um filme realista bastante solidário, na torcida por seus personagens, cujos dramas são metaforizados através de uma panela de pressão prestes a explodir, na sequência derradeira. Recomendamos que ele seja descoberto. O tipo de produção que comprova o quão necessária é a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, para quem presta atenção aos talentos que surgem nos mais variegados países. Que a ascensão — intermitente, mas destrutiva — da extrema-direita política não nos prive desta bênção de evento, que nos oferece um farto catálogo de opções, tanto presenciais quanto virtuais. Voltaremos a falar sobre a Mostra SP no ano que vem!

Wesley Pereira de Castro.

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