Caro leitor, cara leitora, vamos falar sim de política, mas calma, não desista da leitura, não tomarei mais do que 5 minutos do seu tempo e ao final, se nada lhe agradar, terá feito um belo exercício para o seu cérebro, afinal, sua vida depende da saúde desse complexo sistema humano.
Antes de iniciar nosso papo, preciso esclarecer de qual política estou falando. Serão abordados aqui dois momentos da política, o voltado para o conceito de política pública, entendendo-o como uma ação fruto de percepção coletiva, problema nacional, que pode tornar-se uma política de Estado, e em um segundo momento a política partidária, classificada como o exercício da política pública através de filiação a um partido político.
Azanha (2004)[1] ao trabalhar com o conceito de política pública escreve:
Pode-se dizer que um “problema nacional”, como problema governamental, só existe a partir de uma percepção coletiva. Nesses termos, não seria suficiente para afirmar a existência de um problema nacional apenas a consciência crítica de alguns homens em face de uma realidade. É claro que essa observação não deve ser compreendida no sentido ingênuo de que a consciência cria a realidade social, mas apenas significando que, sem as pressões sociais que decorrem de uma percepção coletiva, a simples existência de determinados fatos pode não ser uma questão de governo, isto é, um problema nacional. Somente quando essa consciência se generaliza e se difunde amplamente na sociedade é que se pode falar de um problema em termos nacionais e de governo. (AZANHA, 2004, p. 102)
Logo, segundo Azanha (2004), para que algo se torne uma política pública, é preciso uma percepção coletiva, seguida de grande mobilização popular sobre uma determinada situação da sociedade. Mas é fundamental a escuta atenta de um político, que em sistemas democráticos, são eleitos pelo povo e podem transformar os pedidos e necessidades do povo em legislação a favor desse povo.
Tudo parece óbvio e claro, porém algumas questões como, ideais políticos/partidários, corrupção, excesso de poder, entre outros iguais ou mais perversos, tumultuam esse conceito de bases claras, transformando-o por vezes em uma relação de mão única, onde apenas alguns escolhidos têm voz e vez. Nesse momento, a política começa a ficar cada vez mais distante do povo.
Sinal de fumaça e perigo para a sobrevivência humana
Alguns sinais de desinteresse popular em relação a política pública e partidária despontam de forma crescente pelo mundo. De acordo com o Pew Research Center[2], em pesquisa publicada no ano de 2018, países como Bélgica, Dinamarca e Austrália, registraram no período, em média, 80% de participação popular nas eleições, já os Estados Unidos, Luxemburgo e Suíça, registraram participações abaixo de 54%, sendo que a Suíça registrou apenas 38,6% de participação popular nas suas eleições.
No Brasil, a taxa de abstenção nas últimas eleições preocupa e demonstra um certo desinteresse da população em relação a escolha de quem irá legislar sobre sua vida. O Portal Politize[3], publicou em 23 de outubro deste ano um quadro que demostra a evolução da taxa de abstenção nas eleições no período de 1989 até 2022:
Gráfico 01 — HISTÓRICO DE ABSTENÇÃO ELEITORAL — BRASIL
Com base no gráfico acima, é fácil perceber uma alta nos níveis de abstenção nas eleições brasileiras, mesmo sendo o voto ainda obrigatório no país. Nesse ano de 2024, nas eleições municipais brasileiras, segundo dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o nível de abstenção alcançou a marca de 29,2% no segundo turno eleitoral. Os números indicam um descolamento da política, da vida diária de alguns brasileiros, deixando uma parcela considerável da população a margem das decisões sobre suas próprias vidas.
Segundo dados publicados pelo TSE, aqueles que mais se abstém de votar são formados pela população de menor escolarização[4], pelos que concentram renda mais baixa e pasmem, pelos jovens, que em 2022, na faixa etária entre 21 e 24 anos, registraram o maior índice de abstenção, com 23,39% de ausência. Por fim, os números também demonstram que os homens votam menos que as mulheres. Nas três últimas eleições, a taxa de homens que faltou às urnas foi, em média, 2% maior que a taxa de mulheres.
O índice de abstenção eleitoral no Brasil assusta pelos números, mas identificar que entre a população que se absteve temos uma parcela considerável de jovens, que em teoria seriam os políticos do futuro, assusta ainda mais. Algo vai muito mal, estamos falhando gravemente e identificar a raiz do problema é urgente e extremamente necessária.
Em recente publicação da Transparência Internacional[5], dados sobre a percepção da corrupção em diversos países indicam que a população sente que o mundo político e os diversos órgãos públicos estão cada vez mais tomados pela corrupção. Segundo relatório ano base 2023, o Brasil perdeu 2 pontos no Índice de Percepção da Corrupção e caiu 10 posições, terminando na 104ª colocação entre os 180 países avaliados.
Combinar o crescente nível de abstenção eleitoral brasileiro com os resultados do índice de percepção da corrupção talvez possa provocar alguns insights sobre o assunto central deste texto, porém podem além disso, indicar maior agravamento da situação de distanciamento entre uma parte da população que mais precisa de políticas públicas básicas e o mundo político partidário.
Gráfico 02 — ÍNDICE DE PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO — OCDE
A corrupção é uma doença e precisa ser combatida por todos, nos diversos cantos do mundo, desfazendo redes de corrupção que se entrelaçam e roubam da população o direito à vida. A invisibilidade desta rede de corrupção se instala e se fortalece na atitude de consentimento dos envolvidos, mesmo não concordando inteiramente. Fazem-se de cegos, suspeitam ou até mesmo presenciam, mas com a cultura do abafa[6], deixam-se vencer. Quem vê não denuncia; quem ouve, faz-se de surdo; quem fala, desmente depois. O medo mescla-se à covardia e vence o mais forte.
A história tentando nos contar o segredo
Eleições diretas ocorrem em países democráticos, logo, medir o índice de abstenção em eleições não é algo comum ao mundo todo. Como afirmava Sir Winston Leonard Spencer Churchill, a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais.
Segundo registros históricos, a democracia nasceu na Grécia e tem na origem da palavra o “poder do povo”. Mas basta um olhar atento aos registros históricos para perceber que houve grande resistência em compor um governo de iniciativa popular. Nomes como Platão e Aristóteles, entre outros, eram contrários a interpretação de democracia como poder de iniciativa popular. Além disso, grande parte da população não sabia ler nem escrever, viviam em condições básicas precárias e quando se rebelavam por alguma causa, eram em sua maioria mortos. Política para quem?
Durante séculos vários sistemas democráticos pelo mundo foram se reinventando, se aperfeiçoando e se consolidando como o mais adequado ao mundo moderno. No Brasil, só em 1894 os brasileiros puderam escolher nas urnas um Presidente da República, em uma eleição com 205 candidatos presidenciáveis para uma população de 14,3 milhões, onde somente 800 mil estavam habilitados a votar, 5,6% da população. “O direito ao voto era negado a mulheres, analfabetos, mendigos, soldados rasos e religiosos sujeitos a voto de obediência. O eleitor devia ter ao menos 21 anos” (Fonte: Agência Senado, 03/10/2014)[7].
As mulheres conquistaram o direito ao voto no Brasil apenas em 1932, tendo seu direito incluído na constituição federal em 1934 como facultativo e em 1965 como obrigatório. Atualmente, todo cidadão brasileiro alfabetizado, nascido no país ou naturalizado, com idade entre 18 e 70 anos, é obrigado a votar. O voto é facultativo para jovens com 16 e 17 anos, pessoas com mais de 70 anos e analfabetos, sendo que este último, segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) somam atualmente 9,3 milhões. Somente na constituição federal de 1988, a educação passou a ser direito de todos os cidadãos brasileiros, antes disso, o Estado não tinha a obrigação de garantir a educação de qualidade a todos e todas.
Sua mente tem fome de quê?
Cada cérebro humano se desenvolve de acordo com os estímulos que recebe durante sua vida, principalmente durante a infância e adolescência. Há ainda fatores genéticos, alimentares e culturais. Conforme o estágio humano de cada pessoa, a “fome mental” atinge patamares diferenciados, buscando a necessidade de mais cultura, conhecimento, influências diversas ou apenas comida, segurança e saúde.
Um estudo realizado com base em dados da população brasileira e publicado pela Universidade de Luxemburgo em 2015 intitulado “A pobreza e a Mente[8]”, indica uma relação estreita e prejudicial entre a condição de pobreza infantil e os resultados educacionais dos jovens estudantes das escolas brasileiras.
Na pesquisa os autores afirmam que o nível socioeconômico foi fortemente associado às habilidades cognitivas das crianças, sendo responsável por mais de 30% da variabilidade nas funções executivas e mais de 50% da variabilidade na linguagem. Essas relações permaneceram estatisticamente significantes mesmo após terem sido controlados o status nutricional e emocional, bem como a saúde geral das crianças.
Parece que a fome, em seus vários sentidos, determina as urgências, interesses e escolhas ou não escolhas de um povo.
Retomando os rumos da prosa
Sem dúvida há uma relação estreita entre a qualidade educacional de um povo e seu engajamento com a política pública e partidária. Quanto mais conhecimento de mundo, da história e dos diversos aspectos da evolução humana, maior o repertório metal para entender e adquirir discernimento sobre as questões que envolvem a política e sua relação com a convivência humana. Será então que nos falta Educação de qualidade?
Penso humildemente que não é apenas essa a falta, apesar de entender ser a Educação um dos pilares de sustentação de uma sociedade. Para além das questões educacionais, nos falta o básico, comida suficiente para acabar com a fome que compromete o desenvolvimento cerebral de nossas crianças e adolescentes pelo mundo, segurança pública para garantir que crianças e trabalhadores inocentes não sejam mortos por balas perdidas diariamente, saúde de qualidade para todos que precisam de atendimentos diversos e por fim, acesso à cultura, para moldar cérebros menos dependentes de cortisol em excesso e capazes de viverem fora de suas bolhas sociais.
Quanto mais carências têm os indivíduos, mais eles se embrutecem. No limite, quando lhes falta o essencial, a sua humanidade corre o risco de regredir ao puro estado de animalidade. O seu grau de consciência e liberdade é, portanto, diretamente proporcional ao seu bem-estar material, físico, cultural, emocional e espiritual”. (PONCE, 2002, p.18)[9]
Cérebros preocupados diariamente com a sobrevivência, não encontram espaço para pensar em questões como democracia, voto popular, políticas públicas e ou partidárias, estão dedicados apenas a sobreviver em um ambiente hostil e de abandono político. Cria-se aqui um desequilíbrio democrático, onde apenas um grupo, dos mais favorecidos, tem seus interesses atendidos pelo mundo político, deixando de lado os interesses daqueles calados pelas condições marginais de vida.
Por fim, entendo que o preço a pagar será alto, sentido por todos nós, que corremos o risco de sermos comandados por líderes cada vez mais descolados da realidade humana e preocupados apenas com a manutenção de seu próprio poder.
[1] AZANHA, J.M.P. Planos e políticas de educação no Brasil: Alguns pontos para reflexão. In: Estrutura e funcionamento da educação básica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.
[2] Disponível em: https://es.statista.com/grafico/17553/personas-con-edad-de-votar-que-participan-en-elecciones-generales/ — Acesso em 06/11/2024.
[3] Disponível em: https://www.politize.com.br/abstencao-nas-eleicoes/ — Acesso em 05/11/2024.
[4] No primeiro turno de 2022, segundo dados do TSE, 55% das pessoas que se abstiveram de votar estudaram apenas até o Ensino Fundamental. Isso mostra uma relação entre escolarização e os índices de comparecimento às eleições.
[5] Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/ — Acesso em 05/11/2024.
[6] Expressão da autora: BOCCHI, R. M.B. Há corrupção na educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira. Curitiba: Appris, 2019.
[7] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/10/02/na-1a-eleicao-presidencial-em-1894-brasil-teve-eleitor-de-menos-e-candidato-demais — Acesso em 05/11/2024.
[8] Disponível em: https://cienciaparaeducacao.org/wp-content/uploads/2015/10/A-pobreza-e-a-mente_perspectiva-da-ciencia-cognitiva_DEVPOLUX.compressed.pdf — Acesso em 06/11/2024.
[9] PONCE, B. J. O humano, lugar do sagrado. São Paulo: Olho d’Água, 2002.