Segundo dados enciclopédicos, no dia 19 de junho de 1898, o cinegrafista Affonso Segreto [1875–1919] filmou, de dentro de um navio estrangeiro, algumas imagens da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, de modo que, por conta disso, esta data ficou consagrada como “o dia do cinema brasileiro”. Entretanto, conforme chama a nossa atenção o crítico Jean-Claude Bernardet, na Introdução de sua “Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro”, há algo de estranho nesta comemoração. Afinal, trata-se de “um italiano (radicado no Brasil), com equipamento e material sensível europeus, [que] filma, em território francês (o paquete Brésil), um filme brasileiro”. Ao contrário de outras cinematografias nacionais, em que o “data de nascimento” diz respeito à primeira exibição pública, no Brasil, privilegia-se a filmagem. O que isso implica?
Hodiernamente, esta data (19 de junho) é alvo de múltiplas campanhas midiáticas, em que as pessoas dedicam esse dia específico à audiência e divulgação de filmes brasileiros. Nas listas reproduzidas todos os anos, um dos favoritos do público é recorrentemente elogiado: “O Auto da Compadecida” (2000, de Guel Arraes), condensação da minissérie homônima de TV, exibida no ano anterior. Passada a data, a hegemonia hollywoodiana volta a inundar a publicidade nas redes sociais. Os filmes brasileiros devem ser conferidos em regime de exceção, apenas? Ainda repercutindo uma reflexão bernardetiana, isso talvez ocorra porque os filmes deste país são costumeiramente enfatizados em razão de seu adjetivo pátrio, dependendo de condições guetificadas para exibição.
Em 15 de janeiro de 2024, foi promulgada a Lei n° 14.814, que prediz o seguinte: “até 31 de dezembro de 2033, as empresas proprietárias, locatárias ou arrendatárias de salas, de espaços, de locais ou de complexos de exibição pública comercial ficam obrigadas a exibir obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem no âmbito de sua programação, observados o número mínimo de sessões e a diversidade dos títulos, fixados nos termos do regulamento, com periodicidade anual, por meio de decreto do Poder Executivo”. As reações populares foram imediatas: “seremos obrigados a ver filmes brasileiros, à nossa revelia?”. Houve até quem insinuasse, cinicamente, que o próximo passo seria uma vigilância policialesca dos gostos do público. A malevolência dos influenciadores de extrema-direita — que vestem a camisa da seleção Brasileira de Futebol, mas sente ojeriza pelas produções cinematográficas nacionais — não conhece limites para o ridículo, infelizmente!
Disparadas essas questões, que voltarão em artigos vindouros e em debates decorrentes da publicação do texto ora escrito, falaremos brevemente sobre o longa-metragem “Grande Sertão” (2023), dirigido pelo mesmo Guel Arraes, anteriormente mencionado. Lançado comercialmente em junho de 2024, a obra causou alguma polêmica crítica, em razão de comentários não aceitos sobre os problemas de adaptação da obra, a partir do clássico literário “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. No livro, publicado originalmente em 1956, acompanhamos uma vasta narração, em fluxo de pensamento, por parte do jagunço agora envelhecido Riobaldo, que conta episódios de sua juventude, quando se apaixonara por um companheiro de lutas, sem saber que se tratava de uma mulher. Trata-se de uma enorme simplificação sinóptica, visto que as mais de setecentas páginas do romance contêm inúmeros eventos comungados, apresentados de maneira alinear e numa linguagem ostensivamente inventada por sua instância narrativa. O filme vai num percurso oposto, lamentavelmente.
Transferindo o cenário original (o sertão mineiro) para um complexo de favelas cariocas, justamente apelidado de Sertão, o filme esforça-se por manter trechos literais dos diálogos e por adotar uma teatralidade excessiva nas interpretações dos atores. É quase tudo malogrado, todavia: por mais que se tente não comparar as duas obras — considerando-se que qualquer adaptação é lícita, ao conseguir assumir um aspecto próprio, que não é o que ocorre aqui —, o resultado é sobremaneira decepcionante e despolitizado. A violência extrema da trama é espetacularizada e esvaziada de sentido, visto que se oblitera a relação om o tráfico de drogas, mencionada ‘em passant’ numa aula do professor Riobaldo (vivido por Caio Blat) sobre Joaquim José da Silva Xavier [1746–1792], vulgo Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira. Num breve trecho digressivo, em que reconhecemos o estilo do co-roteirista Jorge Furtado, descobrimos que o ouro, na diegese, seria a cocaína. O bando de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) vive em constante guerra com a polícia, liderada pelo honrado Zé Bebelo (Luís Miranda). Diadorim (interpretada por Luísa Arraes — filha do diretor e namorada do protagonista) é o mais arisco comandado de Joca Ramiro, e lidera uma das poucas cenas efetivamente interessantes do filme, um baile ‘funk’ em homenagem ao seu mentor, quando, no apogeu videoclipesco, finalmente surge um plano que dura mais de trinta segundos. Tudo no filme é artificial, sem emoção e entulhado de citações do livro, como se fossem jargões publicitários ou frases utilizadas por ‘coaches’. Nos créditos finais, uma justificativa produtiva: “além de ser a identidade de um país, a cultura é também parte da economia”. Pena que, para atender às regras desta segunda, anule-se a primeira, muitas vezes. Citando previsivelmente Riobaldo: “nonada!”. Continuaremos esta conversa?
Wesley Pereira de Castro.