Quando se pensa na importância historiográfica do cinema argentino, o nome de Fernando Ezequiel (vulgo Pino) Solanas [1936-2020] destaca-se imediatamente. Além de ter sido responsável por títulos nodais da filmografia de seu país, ele é co-autor de um manifesto importantíssimo, “Em Direção ao Terceiro Cinema”, publicado em 1969, em parceria com Octavio Getino [1935-2012]. Ao lado deste autor, Pino Solanas realizou o monumental documentário “A Hora dos Fornos” (1968), que, em suas mais de quatro horas de duração, exortou a resistência trabalhista do período. Esta obra foi filmada clandestinamente e perseguida pelas ditaduras militares sul-americanas, nos anos que se seguiram. Afinal, o cineasta não se restringia aos limites de sua nação: erigiu um projeto que unificava diversas cinematografias nacionais, asfixiadas pelo imperialismo norte-americano.
Na apresentação que escreveu para o livro “Os Cinemas Nacionais contra Hollywood”, publicado em 1977 por Guy Hennebelle, Pino Solanas delimita ainda mais as intenções de sua proposta cinematográfica: “um cinema realizado a partir dos anseios, interesses e lutas pela afirmação dos povos, (…) um cinema nacional e popular que questiona, mobiliza e estimula”. Em suma: “um cinema ativo”.
Cumprindo à risca o que apregoou teoricamente, Fernando E. Solanas chamou muita atenção com “Tangos, o Exílio de Gardel” (1985) e recebeu a láurea de Melhor Direção no Festival Internacional de Cinema de Cannes com o filme “Sul, Amor e Liberdade” (1988). Mas são os seus documentários que mais impressionam, visto que radicalizam na práxis aquilo que é mencionado no subtítulo de seu ambicioso longa-metragem de estréia: “Notas e Testemunhos do Neocolonialismo, Violência e Libertação”…
No dia 06 de novembro de 2020, aos 84 anos de idade, Pino Solanas falece, em decorrência de complicações do CoronaVírus, na capital francesa, Paris. Em seu país, a quantidade de casos e mortos aumenta de forma acachapante, por causa da segunda onda da doença. No Brasil, ainda são abundantes os negacionistas, que recusam-se a seguir os procedimentos de prevenção e bradam contra a descoberta de uma vacina. O mundo atual confirma a impressão de “genocídio neoliberal” que o cineasta diagnosticou em vários de seus filmes, incluindo o recente documentário “Memórias do Saque” (2004). É acerca deste filme que deteremo-nos daqui por diante…
Tendo como clímax a sublevação popular que ocorreu em 2001, o roteiro radiografa minuciosamente os motivos que conduziram a economia argentina ao colapso. Dividido em uma precisa dezena de capítulos, o filme inicia o seu relato explicando como deu-se o endividamento nacional da Argentina e conclui com os protestos que desencadearam a renúncia do presidente Fernando de la Rúa, em 21 de dezembro de 2001. Pino Solanas filmou por dentro das manifestações, sendo ao mesmo tempo autor e personagem de uma revolta nacional, artífice e promulgador. Seguiu protestando até o seu derradeiro filme!
Não obstante a necessidade de servir-se do “economiquês” para explicar o caos social despejado em seu país pela sanha monetifágica das potências estrangeiras, o filme possui um ritmo ágil e seu discurso é facilmente acessível, entusiástico e contagiante. A câmera do cineasta consegue penetrar os opulentos ambientes bancários e legislativos do país, a fim de expor o contraste entre os privilegiados e as camadas mais pobres da população. Num momento-chave, há um número musical sobre “os levanta-mãos”, em que deputados são mostrados votando cegamente nas determinações advindas de seus partidos. A verve crítica do diretor é inclemente, a ponto de ele ter sofrido um atentado por causa disso, em 1991, quando foi vitimado por quatro tiros, em razão de seus denúncias contra a “mafiocracia” em seu país.
Fernando E. Solanas denuncia de maneira persistente as atividades corruptas do ex-presidente Carlos Menem, que governou o país entre julho de 1989 e dezembro de 1999. Outrora defensor de ideais populares, este governante é exibido como um traidor vilanaz daquilo que prometera em sua campanha política. Numa das sessões que preside, um de seus ministros recita o “decálogo menemiano”, cujo primeiro mandamento é justamente “nada do que é estatal deverá ficar nas mãos do Estado”. Imaginemos a gravidade dos nove mandamentos que se seguem…
No documentário, uma cadeia atordoante de eventos é deslindada, desde o ministro que defende, num programa de televisão, que “endividar-se é bom”, até as acusações criminais que vinculavam o ex-presidente à corrupção aduaneira e outros segmentos mafiosos, passando por várias demonstrações aviltantes de espetacularização política, em que o presidente e seus asseclas participam de programas televisivos de fofocas. Não tendo sido preso, Carlos Menem hoje é senador pela província de La Rioja.
Em seu didatismo fílmico, o cineasta apresenta os bancos internacionais e privados como os maiores vilões da crise econômica da Argentina, mas não exclusivamente. Ressalta-se aqui o depoimento de um médico que é entrevistado numa sequência impressionante, próximo do capítulo final do filme, “O Início do Fim”: “li recentemente, num livro argentino, que a desnutrição não tem a ver apenas com a falta de comida, mas com uma conjunção de fatores que envolve toda a nação”. No hospital em que ele trabalha, oitenta por cento das crianças internadas sofrem de desnutrição. Algumas morrem. A maioria delas brincam na lama, no lixo, em regiões em que os lençóis freáticos estão poluídos por substâncias derivadas de petróleo. O desfecho do filme seria devastador, se o cineasta não preferisse outra tônica emotiva: a comemoração da insurreição popular que iniciou-se com os “panelaços”, numa combinação magistral de sons, intenções e imagens. No período registrado, um presidente inepto renunciou. Mas a luta continua…
Sintomaticamente, muito do que é exibido no filme tem a ver com o que ocorre atualmente no Brasil e com o que pode acometer outros países, em razão da guinada para a extrema-direita política em inúmeras nações. Gradualmente, esta passa a retrair, vide os exemplos recentes do Chile (quando a constituição pinochetiana foi revogada num plebiscito), da Bolívia e do Uruguai (em que os candidatos majoritariamente eleitos são de esquerda) e até mesmo dos EUA, onde Donald Trump não conseguiu reeleger-se. Infelizmente, ainda falta muito para que os ideais comunistas que abundam nos filmes Fernando E. Solanas sejam alcançados. Muitos saques ainda perigam ocorrer, afetando sobretudo aqueles que são os mais pobres. Vivo, ele era um artista e ideólogo brilhante; morto, este cineasta insigne confirmou-se imortal!