O lançamento mundial de “Destacamento Blood” (2020), novo filme do diretor Spike Lee, via Netflix, coincidiu com um período de extrema ebulição justificativa: os protestos antirracistas espalharam-se pelo mundo, denunciando que as agressões policiais contra negros não acontecem apenas nos Estados Unidos da América. Infelizmente, este tipo de comportamento agressivo e pseudo-hierárquico é uma condição elementar da bem-sucedida propaganda capitalista: a presunção de que o “outro” está o tempo inteiro tramando para conquistar o que é teu. A concorrência e a competitividade são estimuladas não apenas em âmbito empresarial, mas íntimo, inclusive no seio familiar. E a Bíblia Sagrada possui inúmeros versículos – fora de contexto, obviamente – que legitimam isso. O discurso é internacionalmente convincente, portanto.
Não obstante a perfeita consonância com o momento histórico-reivindicativo atual, Spike Lee refuta o “discurso de manada” (por melhor intencionado que seja) e opta por uma proposta discursiva muito mais complexa, provocadora e autocrítica. Demonstra que as contradições idealistas e comportamentais são inevitáveis em quaisquer contextos – principalmente, nos mais explicitamente sobrevivenciais – e problematiza de maneira brilhante um dos baluartes constitucionais do mais relevante cinema hollywoodiano: a derivação fordiana de que “imprimir a lenda” ajuda na consolidação identitária de comunidades em contínua necessidade de defesa. Até quando?
Investiguemos isso através do filme, em múltiplos aspectos, como é comum à filmografia contestatória (e muitas vezes incompreendida) do diretor. Em primeiro lugar, a averiguação sintagmática: abordemos a narrativa. Depois de um poderoso e ambivalente pronunciamento do boxeador Muhammad Ali [nascido Cassius Marcellus Clay Jr. em 1942, e falecido em 2016], o diretor apresenta de maneira alinear vários fatos históricos atrelados à intensa crise política estadunidense advinda da má recepção à (derrota na) Guerra do Vietnã. Estamos ainda em âmbito preambular. Nada acontece por acaso na História e muito menos nas estórias, esfrega em nossa cara o magnífico diretor-autor deste filmaço!
Quando somos apresentados ao quarteto protagonista do filme, já sabemos que eles serviram junto no destacamento titular. Ou seja, fizeram parte do grande quociente de cidadãos negros enviados à guerra na Ásia, entre as décadas de 1960 e 1970. Negligenciados em seu heroísmo, poucos foram os soldados negros reverenciados publicamente. Bastante envelhecidos, estes homens reencontram-se depois de muito tempo, na cidade vitenamense de Ho Chin Minh (outrora, Saigon), a fim de buscarem os restos mortais de um amigo em comum, que morreu em batalha. Entretanto, há uma segunda intenção neste reencontro honorífico: eles querem reencontrar também um enorme carregamento de ouro que ficou soterrado após um deslizamento de terra, e que crêem que seja desconhecido por outrem. Consideram-se donos legítimos desta fortuna áurea, em razão de terem sido impiedosamente explorado pelos governos consecutivos de seu País, embasado secularmente em práticas racistas. Temos aqui um ponto nodal de militância, ao menos aparentemente: os negros têm realmente direito a este tesouro, diante do sofrimento que vivenciam diuturnamente enquanto raça. Seria uma reparação histórica, digamos.
Durante as interações iniciais entre os quatro amigos, percebe-se que um deles votou em Donald Trump, nas eleições presidenciais de 2016. Interpretado magistralmente por Delroy Lindo, este personagem, de nome Paul, instaura uma evidente cisão afetiva entre os amigos: além de declarar-se armamentista, evidencia posturas sobremaneira racistas contra os vietnamitas, a quem refere-se como “amarelos”, e demonstrações xenofóbicas de cólera contra os franceses, a quem considera “uns fracotes”. Como pode um protagonista discordar do que seu diretor apregoa? Resposta: quando a lógica fílmica respeita a plurivocalidade basilar das relações humanas. Afinal, toda e qualquer narrativa é contada por alguém, não sendo a única, mas uma dentre várias.
Percebe-se de maneira serôdia que Spike Lee não deixa confundir narrativa e discurso. A perspectiva de acompanhamento fílmico sai dos quatro amigos mais de uma vez, não apenas em relação a Paul e ao encontro inesperado com seu filho David (Jonathan Majors) no Vietnã, mas também quando o viciado em opiáceos Otis (Clarke Peters) descobre que possui uma filha mestiça, oriunda de um envolvimento com a prostituta Tiên (Lê Y Lan), por quem se apaixonou durante a guerra. E é essa ex-prostituta quem auxiliará os quatro amigos a encontrarem um revendedor ilegal para o ouro confiscado, na pele do contrabandista Desroche (Jean Reno). Muito mais acontecerá ao longo dos 154 minutos de duração deste excelente filme…
Somos assim conduzidos ao segundo lugar investigativo, a averiguação paradigmática, demarcada pelas inúmeras bifurcações informativo-discursivas de seu polêmico diretor, que é muito mais didático que doutrinário: em meio às cenas típicas de ação e neobelicismo – que aparentam atualizar as convenções arquetípicas de gêneros clássicos do cinema estadunidense, a cargo de atores como Sylvester Stallone e Chuck Norris, citados nominalmente pelos personagens –, temos acesso a um cabedal crescente de vozes politizadas, não raro contraditórias entre si. Tal qual já fizera em sua obra mais famosa, Spike Lee confronta diretamente as posturas discursivas de Malcolm X (defensor da violência reativa) e Martin Luther King (promulgador firme da não-violência), ambas sintetizadas na figura de Stormin’ Norman (Chadwick Boseman), o soldado morto que serve de mentor ao quarteto de amigos, principalmente em relação a Paul, que tem pesadelos contínuos com ele. Na imagem mais famosa de divulgação do filme, Stormin’ Norm aparece enquadrado como a mais célebre fotografia do revolucionário Huey P. Newton (1942-1989), co-fundador do grupo Panteras Negras. No cinema de Spike Lee, a troca de acusações entre posturas nacionais e identitárias é freqüente. E, obviamente, (quase) todas têm razão!
À medida que as ações se desenvolvem, mais personagens são envolvidos nas pendências internas do quarteto de amigos, como o guia vietnamita Vinh (Johnny Nguyen) e a desarmadora de minas terrestres Hedy (Mélanie Thierry), entre outros. Um inesperado banho de sangue ocorrerá nas seqüências atuais, e não apenas nos ‘flashbacks’ específicos de guerra. Inicialmente, o diretor estabelece diferentes formatos de tela para os tempos distintos da narrativa: o presente é mostrado num arremedo de ‘cinemascope’, enquanto o passado aparece de maneira rigorosamente quadrada. Até que tudo se imiscui numa providencial tela cheia, em que presente e passado são igualmente válidos na possibilidade de um futuro (inter)pessoal. Em documentos fotográficos e/ou cinematográficos, Angela Davis e outros militantes negros importantes aparecem entre as cenas; em reconstituição radiofônica, uma apresentadora vietcongue executa canções de Marvin Gaye para os soldados negros, instruindo-os a “terem cuidado”, em mais de um sentido. A admoestação serve para nós, espectadores, obviamente!
Por mais que queiramos, a panóplia de significados e proposições vivazes despejada por Spike Lee neste filme singularíssimo – desde já um dos seus melhores trabalhos – não esgota-se num único texto sobre ele. É um filme que requer também a pluralidade de interpretações e reações. De maneira bastante audaciosa, o filme assume o pendor autocrítico em inúmeras seqüências, sobretudo nas variegadas citações ao clássico de guerra “Apocalypse Now” (1979, de Francis Ford Coppola), cujo logotipo aparece no fundo de uma ‘rave’ vietnamense, escancarando o grau de assimilação capitalista no país, cujas arquiteturas metropolitanas imitam o cosmopolitismo de consumo de qualquer outro local colonizado produtivamente pelos Estados Unidos da América. Na montagem do filme, os abraços são entrecortados por ângulos contrários: ampliam-se em efeito, demoram-se mais ao serem estranhamente repetidos. Parecem “errados”, em termos técnicos. Não são, logicamente. Mais uma vez, não é por acaso que Spike Lee faz Stormin’ Norm recitar, à guisa de catecismo político, durante um destes abraços duplicados, um dos refrões de Marvin Gaye que destacam-se em meio à bela trilha musical de Terence Blanchard: “Deus é amor, o amor é Deus”. Mesmo isto, aparece como provocação… Filmaço!
Uma resposta
Parabéns Wesley, esse seu texto está perfeito!! Gostei muito o filme e concordo contigo, um dos melhores de Spike Lee. Abraço.