Por mais doloroso que seja lidar com situações traumáticas, a conversão das mesmas em narrativas ajuda as pessoas a enfrentarem aquilo que as ferem por dentro. É assim que músicos como Tori Amos, Fiona Apple e Rufus Wainwright tematizam comumente, em suas canções, os estupros que sofreram, e, de maneira bastante controversa (já que ele próprio é um foragido em relação a acusações de estupro), o diretor polonês Roman Polanski adota em seus filmes uma atmosfera claustrofóbica, referente aos tormentos que sofrera na juventude. Não tardaria, portanto, para que algo semelhante fosse realizado em relação à pandemia provocada pela COVID-19…
Sob o comando do cineasta, artista plástico e militante chinês Ai Weiwei, o documentário “CoroNation” (2020) insurge-se como brilhante relato sobre a devastação ocasionada pelo CoronaVírus, cujo primeiro caso foi relatado em primeiro de dezembro de 2019, na cidade de Wuhan. Segundo um letreiro que aparece apenas ao final do filme, em 23 de janeiro de 2020, a cidade mencionada foi posta em isolamento completo. O que vemos no filme é como isso afetou os moradores, em sentidos político, emocional e administrativo, entre outros.
Evitando a abordagem sensacionalista ou atemorizante – não é o seu interesse, enquanto artista cônscio do poder discursivo de suas imagens –, “CoroNation” tece lentamente uma cadeia de eventos, seguindo a ordem cronológica em que foram filmados. Inicia-se em janeiro, termina em agosto. O diretor montou tudo a partir do material que recebeu à distância, a partir de diversos colaboradores, que filmaram o que puderam com as suas câmeras improvisadas.
Dessa maneira, portanto, o filme inicia-se com a deflagração do isolamento total. A cidade de Wuhan é mostrada esvaziada, em tomadas aéreas impressionantes. O sistema de transportes públicos está paralisado e a neve castiga a região. Faz tanto frio, que até mesmo os combustíveis congelam nos postos de gasolina. Um casal tenta voltar para sua residência, no interior da cidade sob extrema quarentena. São interrogados por policiais e submetidos a medições de temperatura corporal inúmeras vezes. Quando chegam em casa, seus animais estão mortos: peixes jazem assustadoramente em seus aquários.
Com um ritmo bastante lento, e sem o auxílio de letreiros explicativos (exceto na seqüência derradeira, à guisa de síntese), acompanhamos outros eventos relacionados à atordoante pandemia: colaboradores do diretor conseguem filmar as atividades em hospitais. Graças a uma câmera de segurança, acompanhamos o demorado ritual de descontaminação de um médico, ao retirar a sua armadura protetiva. Um deles é quarentenado no estacionamento de um prédio. Inevitavelmente, há o caos, a superlotação de leitos, o pânico entre os familiares dos contaminados e profissionais dos serviços de saúde. Mas repetimos: o diretor evita radicalmente qualquer viés sensacionalista. O que interessa-lhe é a observação, o entendimento nacional!
Num dos momentos mais interessantes do filme, uma senhora idosa recita para o seu filho os ditames do Partido Comunista, enquanto ambos estão confinados domesticamente. “O Partido deve controlar as armas, mas as armas nunca devem controlar o Partido”, explica ela, enquanto exibe os numerosos prêmios que recebeu por suas atividades sindicais durante a época em que a China esteve sob a influência maoísta. Para ela, o Capitalismo é, em si, a pior epidemia a assolar o mundo. Refuta o agendamento noticioso do terror, evidente nas imagens telejornalísticas que expõem a situação de contágio nos Estados Unidos da América. Tudo é político, inclusive o adoecimento.
Noutro segmento, o filme acompanha a revolta de um proletário que foi impedido de ter acesso às cinzas mortuárias de seu pai, vitimado pela COVID-19. Deseja realizar o seu funeral, mas é impedido pelos contratadores de seu progenitor de ter acesso ao que, afetivamente, lhe pertence. Ao contrário da entusiasta comunista anteriormente mostrada, ele despeja severas críticas à burocracia governamental. Seu lamento não é isolado, infelizmente.
Permitindo-se um flerte documental com o melodrama, vemos algumas mulheres chorando copiosamente nas entradas de hospitais e necrotérios, ansiosas pela execução dos rituais fúnebres dos parentes amados, mortos subitamente por causa de uma pandemia que generalizou-se ao redor do mundo. Centenas de milhares de pessoas faleceram internacionalmente. Na China, é costume queimar cédulas monetárias em homenagens aos mortos. Nos EUA – e nos países que agem como sectários imitativos da selvageria capitalista – mata-se para conseguir dinheiro. Ou ignora-se a gravidade de uma doença tão letal. Inventa-se mentiras, recusa-se até mesmo algo tão elementar quanto o uso de máscaras. A malevolência converte-se diuturnamente em ideologia acessória da extrema-direita no poder. Não por acaso, tudo isso acentua-se nos países em que os números de vítimas mortais são mais exorbitantes…
Convém frisar que, a despeito de seu assunto, “CoroNation” não é um filme pessimista. Ousa documentar a expansão de uma mortalidade pandêmica, mas referenda o conselho que o próprio Ai Weiwei publicizou desde que a COVID-19 instalou-se em seu País: “fiquem em casa – e estejam juntos”. Eis um brado político de sobrevivência!