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“Não olhe para cima” ou “não olhe para o clima”: que provas são necessárias para tirar as pessoas da inércia e da negação?

“Não olhe para cima” ou “não olhe para o clima”: que provas são necessárias para tirar as pessoas da inércia e da negação?

Muita coisa já foi dita sobre “Não olhe para cima”, do diretor Adam McKay, lançado pela Netflix há algumas semanas. O filme conta a história de cientistas que descobrem um cometa que está em rota de colisão com a Terra. O impacto irá ocorrer dentro de pouco mais de seis meses e extinguir a humanidade. O longa-metragem soa original ao explorar um estilo “comédia catástrofe” que pouco se assiste por aí. Mas o que faz da produção um grande sucesso – o terceiro filme original mais assistido da Netflix até agora [1] –, é o modo como ela satiriza questões bastante atuais que têm marcado os últimos anos, no mundo e também no Brasil. 

O filme é uma metáfora da questão climática [2], possivelmente o maior desafio científico-político atual da sociedade global (apesar da excepcionalidade da pandemia de coronavírus). Leonardo DiCaprio, que interpreta o professor Randall Mindy, é também um ativista ambiental que frequentemente chama a atenção para a crise climática. A colisão com o cometa Dibiasky – que recebe esse nome em homenagem à pesquisadora Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), que é quem de fato descobre o corpo celeste – é portanto uma metáfora do colapso que as mudanças climáticas podem causar, com efeitos que já podem ser sentidos. Esse cometa-metáfora é, digamos, um pouco mais visualizável que o aquecimento global em si. E esse é o ponto que queremos abordar.

Misturados à trama há diversos elementos que representam a atualidade do contexto das relações entre ciência, política e mídia, o que faz com que “Não olhe para cima” traduza não só os problemas no âmbito da crise climática, mas também o cenário pandêmico e o campo científico de modo geral. O filme retrata satiricamente o negacionismo; a superficialidade do jornalismo, das redes sociais e da sociedade do espetáculo; a influência do capital privado na condução de assuntos científicos por parte dos governos; as desigualdades no tratamento dispensado a homens brancos, homens negros e mulheres; o poder das big techs na captura e manipulação de nossos dados; a perda de autoridade dos processos e métodos científicos (como a revisão por pares) diante do peso dos algoritmos e do funcionamento do mundo digital. Por tudo isso, o filme é tão cativante e leva o espectador a fazer comparações entre passagens do roteiro e acontecimentos da vida real. 

O que Carl Sagan faria?

Logo no primeiro minuto do filme, o segundo plano detalhe nos mostra um bonequinho do astrônomo Carl Sagan, possivelmente o maior divulgador científico do século 20, autor de diversos livros, idealizador e apresentador da primeira versão da popular série de TV Cosmos, em 1980 (meu objeto de pesquisa de mestrado – CAMPOS, 2019). “O que Carl Sagan faria?”, pergunta a sua equipe o professor Mindy, tentando absorver os primeiros dados sobre o cometa recém-descoberto, ainda sem noção da gravidade da situação. Não é nossa pretensão dizer o que Sagan faria nos estudos astronômicos, mas podemos refletir sobre como ele fez divulgação científica. 

Sagan fazia o que podia para, por meio de metáforas visuais, converter em imagens conceitos científicos difíceis de visualizar. É o que podemos ver em Cosmos, quando ele se vale de uma maçã e uma maquete simplória, feita com retalhos de papel, cartolina ou papelão, para explicar como seria a quarta dimensão [3]; ou quando o vemos subindo uma escada semelhante ao formato de uma representação do DNA, no Royal Botanic Garden (RU), pala falar sobre o funcionamento das plantas [4]; ou também quando ele assopra com um canudo uma bacia com água e sabão, formando bolhas, para mostrar mais ou menos como seria a forma das galáxias [5]. A engenhosidade de Sagan tentava driblar a precariedade dos recursos disponíveis naqueles tempos para estabelecer uma ponte entre nossa capacidade de cognição e a abstração de alguns modelos e conceitos científicos.

Metáfora e divulgação científica

As figuras de linguagem são uma ferramenta importante para, ao mesmo tempo, simplificar o conhecimento e aproximá-lo do senso comum. É o caso das metáforas. Há metáfora quando, por exemplo, as pontes de Einstein-Rosen são chamadas de “buracos de minhoca”. Essas pontes, de acordo com o estudo publicado em 1935 por Albert Einstein e Nathan Rosen, são parecidas com um túnel com duas extremidades separadas no espaço tempo ligando regiões espaciais distintas. O conceito às vezes é explorado em obras de ficção científica para justificar viagens no tempo, como no filme Interestelar (2014). “Buraco de minhoca” é uma forma de criar um tipo de visualização na cabeça do destinatário da informação em relação a algo que não pode ser visto. “Na metáfora, a associação se processa entre termos de dois campos semânticos distintos, advindo a assimilação entre os termos. Quanto maior a assimilação, melhor efeito causará” (RIBEIRO, 2012, p 368). 

A existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de abstração absoluta, a pobreza relativa do vocabulário disponível, em contraste com a riqueza e a numerosidade das ideias a transmitir, e, ainda, o prazer estético da caracterização pitoresca, constituem as motivações da metáfora” (GARCIA apud RIBEIRO, 2012, p 368).

A divulgação científica funciona como um elo entre o público em geral e a produção de ciência. A metáfora é um de seus principais recursos. Para Dorothy Nelkin, um dos maiores propósitos da divulgação científica é “facilitar para as pessoas o acesso a um conhecimento especializado, já que, com frequência, se enfrentam decisões e eleições – tanto de repercussão pública como privada – que requerem certa compreensão científica” (apud LEÓN, 2010, p 29-30). Uma vez que ninguém pode ter conhecimento especializado sobre todas as coisas (nem mesmo os próprios cientistas), a divulgação científica surge para traduzir conhecimentos complexos, produzidos por aqueles que estão imersos em determinados segmentos de pesquisa, para outras pessoas que, direta ou indiretamente, são afetadas pela produção desses conhecimentos específicos. É, portanto, um modo discursivo que serve de plataforma para que as partes se entendam. 

Metáforas para visualizarem a crise climática

Já a segunda versão de Cosmos, apresentada por Neil deGrasse Tyson (que chegou a ser aluno da Carl Sagan), em 2014, dispôs de muito mais recursos visuais do que a versão original, devido aos avanços tecnológicos e às possibilidades da computação gráfica. Ainda assim, a engenhosidade em usar elementos simples para criar pequenas metáforas visuais, fazendo conceitos complexos ou abstratos parecerem mais paupáveis e visualizáveis, é perceptível e encantadora. Por exemplo, quando Tyson, para explicar a diferença entre “tempo” e “clima”, usa seu passeio com um cachorro em uma praia [6]. A sequência é tão boa que foi copiada por Felipe Castanhari na série de divulgação científica “Mundo Mistério”, da Netflix (e isso não é nenhum demérito, pois o que é bom merece ser copiado!). 

No mesmo episódio, que, assim como “Não olhe para cima”, aborda os riscos das mudanças climáticas, Tyson resume literalmente aquilo que Cosmos, enquanto um documentário científico, tenta fazer: traduzir o problema do aquecimento do planeta em imagem. “É uma pena que o CO2 seja invisível. Talvez se pudéssemos vê-lo. Se nossos olhos fossem sensíveis ao CO2…”. A fala do apresentador é o gancho para uma curta sequência em que o dióxido de carbono é representado por uma fumaça roxa, bastante visível, saindo de carros e aviões e tomando o horizonte de uma grande cidade [6]. “Se pudéssemos ver todo esse dióxido de carbono, deixaríamos a negação de lado e entenderíamos a magnitude de nosso impacto na atmosfera”, reforça Tyson.

São Tomé dizia que era preciso ver para crer. Tyson parte desse princípio ao discutir o negacionismo climático em 2014 e acredita que, quanto mais visualizável for o problema, maior a capacidade de convencimento a respeito da gravidade desse problema. “Não olhe para cima” parece partir da mesma ideia, só que de uma forma mais artística, porém mais cética, ou, ainda, mais desesperada. O filme trata da questão climática de forma alegórica, usando um cometa na direção da Terra como a alegoria. Essa é a metáfora visual. 

A relação entre o filme e a divulgação científica e seus atuais desafios é evidente, mas “Não olhe para cima” não é divulgação científica e sim cinema, arte. Portanto a metáfora pode ser muito mais elástica, com maior riqueza estética. E assim ela é. Se Cosmos transforma o CO2 em uma fumaça roxa, o filme de Adam McKay transforma as mudanças climáticas em um cometa gigante que está rasgando o céu, a cada dia mais visivel, vindo em nossa direção e prestes a arrebentar com tudo bem na nossa cara. Arrebentar comigo e com você! O que pode ser mais radicalmente visivel que isso?

Por mais que a gente mostre, o negacionismo parece maior

O problema é que o filme, mais do que Tyson na série Cosmos de 2014, parece entender que o negacionismo é um problema muito maior do que se imaginava. E nisso consiste o seu grande ceticismo (e pessimismo). Roteirizado às vésperas da pandemia, as dimensões do negacionismo ficaram ainda mais evidentes no contexto pandêmico, fazendo com que, por mais que a obra mire nas mudanças climáticas, ela possa ser muito bem interpretada usando o problema da covid-19 como parâmetro, incluindo a negação das máscaras, das vacinas, do isolamento social etc.  

Sendo assim, ainda que o filme use a alegoria do cometa como metáfora visual para tratar da questão climática, ele traz implícita a ideia (desesperadora) de que por mais visivel e tangível que uma prova seja, nem esfregando na cara de um negacionista ela é capaz de convencê-lo. Embora, no final do filme (atenção, spoilers!), muitos percebam que foram enganados, quando já é tarde demais.

Em um momento da trama em que se discutia quais as melhores estratégias para lidar com o cometa e se sua vinda era boa ou ruim (isso porque políticos, empresários e propagandistas [7] conseguiram convencer parte da população de que um cometa em rota de colisão com o planeta poderia ser uma coisa boa), havia muita gente que sequer acreditava na existência do tal cometa. Em um telejornal, quando perguntado pelos apresentadores se o cometa realmente existe, o professor Mindy perde a paciência: “Nós sabemos que o cometa existe porque temos dados. Nós o vimos com nossos próprios olhos, usando um telescópio, e ainda tiramos uma porcaria de uma foto dele. Que outra prova precisamos?”

Talvez essa seja a principal pergunta deixada pelo filme. Ou, perguntando de outras formas: quais seriam as provas necessárias para fazerem as pessoas saírem do estado de negação ou de inércia? O que é preciso ser esfregado na sua cara para te fazer mudar de opinião?

Internet, redes sociais e a perda das bases em comum

O professor Mindy segue na entrevista pragejando contra o contexto comuncacional e a nossa dificuldade de diálogo, em que cada vez mais bases que até então eram compartilhadas vão sendo erodidas: “Se nós não conseguimos concordar minimamente que um cometa do tamanho do Everest está vindo em direção à Terra, então estamos ferrados! Como ainda conseguimos nos comunicar? O que nós nos tornamos? Como vamos consertar isso?”

Para que possamos avançar nos diálogos e na produção de conhecimento, precisamos de bases em comum. Por exemplo, não dá para discutir sobre o funcionamento do GPS ou das circum-navegações (e olha que elas são bem antigas!) sem partir do entendimento de que a Terra é redonda. O problema é que cada vez mais os consensos vão ficando raros e as pessoas vão se isolando em bolhas de opinião que, de tão dispersas e distantes umas das outras, parecem transformar-se em verdadeiros buracos negros de cognição. E o diálogo fica impossível. É muito difícil avançarmos sem partirmos de alguns consensos já estabelecidos. 

Ao abordarmos essa nossa dificuldade em nos comunicar, não há como não refletirmos sobre os modos como as redes sociais favoreceram a criação de inúmeras bolhas ideológicas, que funcionam como verdadeiros universos paralelos que coabitam nas sociedades. “Não olhe para cima” não deixa  essa crítica escapar e também dispara sobre como o funcionamento dos algorítmos das redes sociais possibilita a disseminação de teorias conspiratórias das mais absurdas, que contribuem para o não entendimento de consensos científicos. E as mudanças climáticas antropogênicas (causadas pela ação do homem) são um consenso científico [8]. 

Para o historiador da ciência David Wootton, de forma irônica e contraditória, as novas tecnologias comunicacionais nos fizeram retornar à Idade Média em certo aspecto, pois as pessoas se dividiram em tribos, que reunem somente aqueles que possuem opiniões semelhantes. “É um processo no qual reforçam seus próprios preconceitos e suposições. E acham que quem discorda é irracional e mal intencionado. E o contato que acontecia entre pessoas de pontos de vista diferentes está acabando”. (WOOTTON, 2017). Ele prossegue:    

A internet cria uma enchente de pontos de vista diferentes e você não consegue diferenciar o certo do errado, pois todos parecem igualmente convincentes na tela. (…) A fofoca está sendo transformada em opinião, e fica bem mais difícil distinguir argumentos bem fundados de preconceito. Acho que a internet está nos levando de volta a um mundo medieval no qual as histórias se espalham rapidamente, sejam verdadeiras ou falsas, e fica impossível descobrir de onde vieram e se são confiáveis” (WOOTTON, 2017).

Deixar de usar a internet e as redes sociais com certeza não é a solução. Mas ficam as perguntas do professor Mindy: Que provas precisamos apresentar? Como ainda conseguimos nos comunicar? O que nós nos tornamos? Como vamos consertar isso? “Não olhe para cima” não traz as respostas, mas ao menos faz as perguntas pertinentes de uma forma perspicaz e divertida, embora desperte um sorriso amarelado num tom de desespero. 

 

Referências:

CAMPOS, Alexandre Freitas. Cotidiano, imaginário e o discurso da ciência na série de TV Cosmos. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2019.

LEÓN, Benvenido (org). Ciencia para la televisión: el documental científico y sus claves. Barcelona: UOC, 2010.

RIBEIRO, Manoel P. Nova gramática aplicada da Língua Portuguesa: a construção de sentido de acordo com a nova gramática. Rio de Janeiro: Metáfora Editora, 2012, 21ª ed.

WOOTTON, David. Ideias do milênio: “A internet está nos levando de volta a um mundo medieval”. Consultor Jurídico. 10 jun 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jul-10/milenio-david-wootton-autor-breve-historia-fatos> Acesso em 14 jan 2022.

[1] https://olhardigital.com.br/2022/01/06/cinema-e-streaming/nao-olhe-para-cima-se-torna-o-filme-da-netflix-mais-visto-em-uma-unica-semana/

[2] https://www.legiaodosherois.com.br/2021/nao-olhe-para-cima-adam-mckay-tematicas.html

[3] https://www.youtube.com/watch?v=WMZNLy0hGEI

[4] https://www.youtube.com/watch?v=vUZJk7xkGWg

[5] https://www.youtube.com/watch?v=8tjr1uEFvNc

[6] https://pt-br.facebook.com/COSMOSNatGeoBrasil/videos/o-novo-mundo-livre-cosmos-s01e12-2014/592672854409958/ ou https://vimeo.com/153447904

[7] https://universoracionalista.org/alan-sokal-o-pior-inimigo-da-ciencia-nao-e-deus-sao-os-politicos-e-a-propaganda/

[8] https://socientifica.com.br/revisao-descobriu-falhas-em-todos-os-3-dos-artigos-cientificos-que-negam-as-mudancas-climaticas/

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